El Salvador não é aqui: o perigo da pós-política mora ao lado

A história de um presidente que traiu a esquerda para executar os sonhos mais distópicos da extrema-direita, incluindo a construção de um mega presídio cinematográfico

por Raul Floriano

As imagens do vídeo são repugnantes: homens de cabeça raspada, quase nus senão por uma bermuda branca, encurvados com as mãos atrás da cabeça ou levando-as algemadas com correntes que prendem também os pés, correm incessantemente por pavilhões de um presídio moderno sob o olhar de guardas com capuzes, capacetes, fuzis e cassetetes.

Policiais conduzem os presos agarrando suas nucas, obrigam-nos a correr e sentar depressa até lotarem um pátio da prisão, evocando nossa memória do Carandiru. Tudo em um tom épico e positivo, com direito a close-up de uma mão fechando um trinco como se trancasse uma jaula, ao som da batida de Bad World, do artista Saint Mesa, cuja letra diria “corra, corra pra valer, porque eles virão, eles virão te pegar”.    

O enaltecimento da violência policial e institucional partiu de um vídeo oficial e postado na conta de Nayib Bukele, o presidente de 42 anos de El Salvador, que alega ter encontrado a solução para o antigo problema dos grupos criminosos no país. A absurda peça propagandística exaltava a transferência de dois mil presos para o Centro de Confinamento do Terrorismo (CECOT), o “maior presídio das Américas”, com capacidade para 40.000 detentos, vigiados por 600 militares e 250 policiais civis.

Entender esse fenômeno político é fundamental para a esquerda do continente pelo risco de sua propagação: o menor país continental da América Latina abriga o presidente mais popular – Bukele tem 92% de aprovação. Sua trajetória na institucionalidade salvadorenha e a política criminosa que vem implementando nos deve servir de alerta.

Do adubo da pós-política floresce o “presidente millennial”

Bukele, empresário de ascendência Palestina, abandonou a direção dos negócios da família para ser prefeito do pequeno município de Nuevo Cuscatlán aos 30 anos. Depois, embalado por uma narrativa exagerada e midiática de que tinha revolucionado aquela pequena cidade abandonada, Bukele venceria as eleições municipais para a capital do país, San Salvador. Mais um mandato quadrienal e pesada campanha nas redes sociais fizeram do “jovem candidato antissistema” presidente de El Salvador.

A persona criada para o candidato nos soa familiar. Onde se acostumou aos discursos de “nem esquerda, nem direita”, de que a “política tem de ser técnica, e não ideológica”, ao discurso da pós-política –  personificado em figuras como a de Tábata Amaral ou de todo um partido, como a Rede – não é difícil compreender a força do posicionamento ideológico do presidente salvadorenho.

Em entrevista concedida em 2012, Bukele afirma que pertence “à esquerda radical, pois quer mudanças radicais”. Prossegue, elucidando: “No mundo atual, há conservadores e radicais: os conservadores não querem mudanças e os radicais, como eu, querem mudanças, e sem esperar muito”.

Para ele, tão grave quanto a desigualdade social, onde mais de 40% da população vive na pobreza, é a divisão ideológica: “Um dos grandes problemas do país é a divisão social, que se soma à divisão ideológica […]. Aqui em El Salvador, vendeu-se a ideia de que empresários são de direita […]. Isso é falso. É um erro histórico que talvez funcionasse em outra época, no passado. Hoje, não é essa a realidade em que vive o mundo. Agora há uma direita e uma esquerda que discordam em como se deve administrar o Estado, e não uma luta de oprimidos e opressores, como existia antes”.

Nayib Bukele pertenceu, até sua expulsão em 2017, da Frente Farabundo Martí de Libertação Nacional (FMNL). Criada em 1980 como principal expressão política da luta contra a pobreza, carrega em seu nome a homenagem ao dirigente comunista morto na guerrilha dos camponeses indígenas de 1932. Expulso, Bukele apenas tweetou dizendo que sua página na Wikipédia estava atualizada, mostrando que passara a ser “independente”.

Das cinzas da esquerda surge a pós-política

El Salvador conquista independência em 1821, com protagonismo da oligarquia latifundiária exportadora de anil, passando depois pela extinção da propriedade coletiva das terras indígenas (ejidos), alvo dos latifundiários do café, principal produto nacional no fim do século XIX. Com a concentração de terras e riqueza, o país atravessa grave instabilidade política no início do século XX e, após eleições conturbadas em 1932, camadas populares, organizadas principalmente na Federação Regional dos Trabalhadores (1925) e no Partido Comunista Salvadorenho (1930), sublevam-se contra o governo. A insurreição indígena-campesina de 1932 foi brutalmente reprimida: o governo admitiu 12 mil mortes, enquanto os revolucionários indicavam 30 mil. Em 1º de fevereiro de 1932, Farabundo Martí seria executado, ao lado de Mario Zapata e Alfonso Luna, líderes do levante.

Segue uma sucessão de governos militares autoritários, combatidos em longa guerra civil, de 1980 a 1992. Iniciada após o assassinato do monsenhor Oscar Romero – canonizado em 2018 pelo Papa Francisco – sinal para a esquerda de que não havia saída institucional, a guerra de guerrilha em El Salvador não foi vitoriosa como em Cuba e Nicarágua. Mas, a principal organização da guerrilha, a FMLN – articulação de cinco organizações político-militares, que incluía o PCS – foi legitimada interna e internacionalmente. Saindo da luta contra o imperialismo americano e do subsequente Acordo de Paz de Chapultepec (1992), a frente se consolidou como importante partido político. Em 2009, após 24 governos de direita autoritária, elegeria seu primeiro presidente, Maurício Furnes. Em 2014, repetiria o feito com Salvador Sanchéz.

A FMLN herdou um país destroçado com a receita neoliberal dos governos da Aliança Republicana Nacionalista (Arena), que presidiu El Salvador de 1989 a 2010. O partido retomou caráter socialista em 2002, sob a hegemonia da Corrente Revolucionária Socialista, de Schafik Handal. Em 2015, resoluções do primeiro congresso previam dificuldades em implementar mudanças significativas à sociedade dentro dos limites da formação econômico-social imposta ao país. Mas a direita tinha planos ainda mais imediatos.

Desde 2014, a oposição salvadorenha promovia guerra midiática, com acusações de corrupção e espetacularização das ações de gangues no território nacional. Passa a controlar a Sala Constitucional do Tribunal Supremo de Justiça para prender opositores. Aliado a isso, a Suprema Corte do país agia para impedir a atuação do governo de esquerda, por meio da suspensão da reforma da Lei do Sistema de Poupanças e Aposentadorias (2017) e da anulação do Orçamento Geral da Nação (2017).

Sem saída institucional, à esquerda restou assistir à eleição do político antipolítico e antissistema, empresário – agora “de centro” e inimigo ferrenho da FMLN – que tinha uma plataforma simples de campanha: combate à corrupção e luta contra a violência das gangues. Após abandonar publicamente a primeira preocupação, Bukele mostrou todo o perigo do significante vazio na política ao tratar da segunda.

O crime da guerra ao crime

As violações dos direitos civis, políticos e humanos pela gestão do combate às gangues (pandillas) salvadorenhas iniciaram antes da construção do mega presídio inaugurado em 2023. Em fevereiro de 2020, soldados armados entram no Congresso Nacional para intimidar os deputados à aprovação de um volumoso empréstimo direcionado às Forças Armadas. No mesmo ano, após ondas de violência, o presidente ordenaria a adoção de medidas desumanas em presídios: lockdowns de mais de 24 horas em solitárias, proibição de visitas, realocação de integrantes de gangues rivais em celas conjuntas e torturas de toda sorte.       

Acirramento da política criminal, cerceamentos à democracia e à cidadania, tentativa de asfixiar todo exercício de participação popular. Em 2021, Bukele iniciou campanha contra o Tribunal Superior Eleitoral, alegando fraude para as eleições legislativas. No dia da diplomação da maioria legislativa constituída por seu partido Nuevas Ideas, foram substituídos cinco juízes da Suprema Corte do país. Multiplicaram-se ataques contra veículos como El Faro, Revista Factum e Gato Encerrado, que passaram a ser constantemente acusados pelo presidente de serem favoráveis às gangues.

Em 27 de março de 2022, a onda de autoritarismo direitista atingiu seu ponto mais alto: Nayib Bukele declarou estado de emergência no país, suspendendo a validade de direitos constitucionais no território.

O presidente já o renovou por oito vezes. Desde então, em menos de um ano, a polícia de El Salvador prendeu 64.000 supostos pandilleros. Foi sob esse criminoso estado de emergência que se construiu o presídio com capacidade para 40.000 detentos, sem área de recreação, pátio livre ou saída de cela. Não bastasse, a suposta redução da criminalidade é alardeada pelo presidente enquanto seu governo oculta os dados de criminalidade, declarando-os classificados, ou faz acordos secretos com as gangues que jura combater.

Na segunda semana de março, o presidente colombiano Gustavo Petro voltou a criticar o presidente salvadorenho publicamente, em episódio que tem se tornado comum na relação entre os dois líderes. A preocupação de Petro é justa e devia ser de toda a esquerda latino-americana. Em países sob constante ataque do imperialismo, com classes populares que sofrem com dificuldades organizativas e falta de inserção em estruturas do poder constituído, além de contar com partidos de esquerda enfrentando de maneira capenga os limites institucionais impostos pelo sistema capitalista, fica dada a receita para o fenômeno Bukele: o surgimento de uma figura política jovem, antissistema, hábil em redes sociais, nem de esquerda, nem de direita, mas terrivelmente de direita, sempre pronta para encarcerar toda sua população num mega presídio a céu aberto, prenhe de violações aos direitos mais básicos da humanidade.

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