A terceirização é um tema controverso que divide opiniões. Seus defensores acreditam que ela pode garantir uma economia mais enxuta. Por trás da “economia mais enxuta” está a precarização do trabalho e dos serviços público
Por: Guilherme Monteiro, Larissa Neves e Paula Alves
Outros artigos da série: primeiro, segundo , terceiro
Introdução
A terceirização ou subcontratação é um fenômeno bastante controverso e que divide opiniões dentro das mais variadas áreas da sociedade. Muitos de seus defensores levantam a bandeira de que a terceirização, principalmente dentro da administração pública, garante uma economia mais “enxuta”, sem gastos desnecessários com funcionários que não desempenham funções primárias na empresa.
Contudo, como vimos ressaltando nessa série da revista O Ipê, o que presenciamos na prática é um verdadeiro ataque à estabilidade empregatícia e à dignidade do trabalhador, em que o empregado terceirizado está a um telefonema de ser demitido ou, no mínimo, afastado da empresa na qual presta seus serviços. Fora isso, existe uma barreira invisível que separa os subcontratados e os contratados que trabalham sob o mesmo teto. Essa barreira é erguida sob aspectos subjetivos, como a sensação de não pertencimento daqueles subcontratados, e também é erguida sob aspectos objetivos, como a discrepância de salários e benefícios entre contratados e subcontratados.
Porém, por mais que consideremos como moralmente condenável qualquer ataque aos direitos dos trabalhadores, existem dispositivos jurídicos que regulamentam a terceirização. Estes dispositivos variam conforme o país. Em Portugal, na Espanha e na Itália a legislação é muito menos flexível quanto à terceirização, com grandes restrições aos tipos de serviços que podem ser terceirizados e exigências de igualdade salarial com os empregados da empresa tomadora de serviços. Contudo, em terras brasileiras o martelo da justiça bate um pouco diferente. É o que veremos neste último texto da série sobre terceirização da revista O Ipê.
Uma breve revisão da legislação brasileira sobre direitos dos terceirizados
Podemos compreender como marco inicial da terceirização na administração pública no Brasil o Decreto-Lei nº 200, de 1967. Este decreto, ainda nos primeiros anos da ditadura militar, aponta, em seu art. 10, § 7º, que a administração pública “procurará desobrigar-se da realização material de tarefas executivas, recorrendo, sempre que possível, à execução indireta, mediante contrato, desde que exista, na área, iniciativa privada suficientemente desenvolvida e capacitada a desempenhar os encargos de execução”. Mas quais seriam estas tarefas executivas? Após 3 anos, a Lei 5.645/70 responde melhor esta pergunta, trazendo em seu art. 3º, parágrafo único, que as atividades de “transporte, conservação, custódia, operação de elevadores, limpeza e outras assemelhadas” na administração pública deveriam ser, preferencialmente, executadas por meio de empresas terceirizadas.
Apesar de já autorizada tanto para empresas públicas quanto para privadas, foi apenas nos anos 80 que a terceirização ganhou forma e ampliou sua ação sob o mercado de trabalho. As dificuldades econômicas enfrentadas pelo país nesse período contribuíram para o avanço de uma terceirização indiscriminada, preenchendo os mais diversos setores. Foi com base nisso que o Tribunal Superior do Trabalho (TST), no ano de 1986, editou o Enunciado nº 256, que dispunha que apenas a terceirização em serviços de trabalho temporário e vigilância seriam autorizados. Onze anos mais tarde, no governo de Fernando Henrique Cardoso, o decreto 2.271/97 determinava quais atividades seriam consideradas atividades-meio e, portanto, preferivelmente terceirizadas. Essas atividades eram as de conservação, limpeza, segurança, vigilância, transportes, informática, copeiragem, recepção, reprografia, telecomunicações e manutenção de prédios, equipamentos e instalações.
Na súmula 331, formulada em 1993, mas revisitada nos anos 2000 e 2011, consta que a responsabilidade pelos direitos dos terceirizados se dá de forma subsidiária pela administração pública. Existem duas formas de responsabilidade que regem a relação entre empresas: a solidária, nas quais ambas empresas envolvidas se responsabilizam de forma igual pelos cumprimentos de suas obrigações; e a subsidiária, na qual a empresa se responsabiliza pelo cumprimento das obrigações apenas caso todo o patrimônio da outra empresa estiver sido exaurido. Isto implica que, na prática, existirão duas situações em qual o Estado poderá ser responsabilizado pelo desrespeito aos direitos do trabalhador terceirizado: (1) quando a empresa prestadora de serviços não possuir mais nenhum bem ou dinheiro em caixa; ou (2) quando for provado que a administração pública foi omissa ao fiscalizar as condições da empresa prestadora de serviços de honrar com seus compromissos.
A parte perniciosa disso é que a responsabilidade da prova, de acordo com o entendimento do STF, cabe ao trabalhador lesado. Dessa forma, “a responsabilidade da Administração Pública não pode ser automática, cabendo sua condenação apenas se houver prova inequívoca de sua conduta omissiva ou comissiva na fiscalização dos contratos”, e foi atribuído “o ônus de provar o descumprimento desse dever legal ao trabalhador”.
Contudo, se a situação para a classe trabalhadora já não estava boa, o presidente Michel Temer colocaria como mote do seu governo atacar ainda mais os direitos trabalhistas, incluindo os dos terceirizados. Já em 2017, por meio da lei nº 13.429, é autorizado que empresas terceirizem não só as atividades-meio, mas também as atividades-fim. Porém, não se define com precisão que funções se enquadrariam em cada tipo de atividade. O Decreto nº 9.507, de 21 de setembro de 2018, resolve isso para a administração pública, mas, ao contrário do Decreto 2.271 de FHC, este não diz quais atividades podem ser terceirizadas, mas sim as que não podem.
É interessante pensar o quanto essa alteração no discurso simboliza para o atual estado de ataque aos direitos do trabalhador: se antes era mais fácil listar aquelas atividades que estariam autorizadas a serem terceirizadas, agora economizaria papel apontar apenas as que não podem. Essas atividades não terceirizáveis seriam: as que envolvem tomadas de decisão nas áreas de planejamento, coordenação supervisão e controle; aquelas consideradas estratégicas (por mais que o decreto não defina com exatidão o que seria “estratégico”); as relacionadas ao poder de polícia, regulação, outorga de serviços públicos e aplicação de sanção; e que sejam abrangidas pelo plano de cargos do órgão ou da entidade.
Contudo, há de se reconhecer uma pequena vitória: em dezembro de 2019 foi estabelecida a decisão da Subseção I Especializada em Dissídios Individuais (SBI-1), que atribui à Administração Pública o ônus de provar que os contratos foram devidamente fiscalizados. Caso contrário, ela será responsabilizada subsidiariamente pelas verbas trabalhistas não cumpridas.
O processo de licitação: instrumento na redução de direitos e do salário de terceirizados.
Na administração pública, a terceirização de serviços entrou como uma alternativa para cortar custos, na lógica do Estado mínimo. No entanto, como funciona esse barateamento? Se estamos falando de uma prestação de serviço que segue sendo necessária e integralmente executada, de onde se corta? A resposta é certa: do trabalhador.
Como vimos mais de perto no terceiro texto da presente série da revista O Ipê, a precarização do trabalhador terceirizado já começa no próprio processo de licitação, obrigatório para a contratação de serviços privados na administração pública. Uma vez que, nesse processo, ganha a empresa que oferecer o menor preço. A questão é: se o contrato oferecido é para funcionários que trabalham na limpeza, ou funcionários que trabalham na segurança, ou qualquer outra função, o foco aqui é que se trata do contrato indireto de um trabalhador, que recebe, basicamente, um salário e direitos trabalhistas agregados ao seu contrato. Assim, ao se escolher a empresa que oferece o menor preço por um trabalhador, a lógica é que esse preço esteja sendo oferecido às custas de baixos salários e de algum direito, mesmo que seja comum ouvir que, genericamente, todo trabalhador terceirizado tem os mesmos direitos que um contratado direto.
Algumas questões que demonstram como isso simplesmente não funciona na realidade dizem respeito à própria forma de se ver o trabalhador terceirizado como dispensável, menos valioso porque submetido puramente à lógica mercadológica, sem que seja levada em conta a função social de seu trabalho. Assim, mesmo que na Constituição Federal declare-se a valorização do trabalho humano” (Art. 170, caput), bem como a “busca pelo pleno emprego” (Art. 170, VIII), a prática da terceirização pela administração pública põe em vigor a desvalorização do trabalho e do trabalhador quando lança uma licitação para a contratação de serviços, logo, de trabalho, da mesma maneira como se compra material de expediente, em que vencerá o menor preço.
Antes da Reforma Trabalhista de 2017, trabalhava-se com a garantia de equiparação salarial entre os funcionários diretos da empresa e os funcionários terceirizados desde que na mesma função, prevista na CLT. Na prática, porém, quando se trata do serviço público, essa foi uma questão que rapidamente deixou de fazer sentido, uma vez que, a partir de 1997, com o Decreto-Lei n° 2271, houve o direcionamento da terceirização para certas funções específicas, as de limpeza e conservação, segurança, vigilância, transportes, informática, copeiragem, recepção, reprografia, telecomunicações e manutenção de prédios, equipamentos e instalações (Art. 1°, parágrafo 1°), descritos como atividades que seriam “de preferência, objeto de execução indireta”, para as quais passaram a ser raros, por isso, os concursos a partir de então. Com isso, o parâmetro salarial ao qual equiparar-se passaria a ser cada vez menos concreto, deixando uma lacuna a ser preenchida pela própria empresa privada empregadora, ou seja, um consentimento ao baixo salário.
Após a Reforma, porém, mesmo essa cláusula foi quebrada, agora ficando a depender de um acordo entre a prestadora e a tomadora dos serviços (art. 4º-C, I, II e §1º da Lei 6.019/1974, com redação dada pela Lei 13.467/2017), ou seja, acaba tornando-se ainda mais vinculada ao preço oferecido nessa contratação, o que é claro, dificulta uma decisão em favor do trabalhador terceirizado. Se esse cenário já era preocupante, em 21 de setembro de 2020 o Supremo Tribunal Federal ainda ratificou a impossibilidade de equiparar-se os salários de terceirizados aos dos empregados de empresa pública, sob a justificativa central de que o respeito aos princípios da liberdade de iniciativa e da livre concorrência impede que se imponha à empresa contratada que remuneração pagar aos seus empregados. Com isso, conservam-se os interesses empresariais às custas dos direitos dos trabalhadores, que deveriam estar protegidos pela Constituição, em especial quando esta se refere à valorização do trabalho.
Se nem o salário, direito básico fundamental do trabalhador em uma sociedade não-escravocrata, é respeitado em sua integridade na lógica da terceirização, os direitos trabalhistas são ainda mais frágeis. É comum ouvir que estes trabalhadores gozam dos mesmos direitos que os demais, tudo que é garantido pela CLT (ou o que restou dela). No entanto, a sua situação dúbia leva a questões morais sobre a responsabilidade pela garantia desses direitos: cabem somente à empresa empregadora, onde muitas vezes o trabalhador só vai para assinar o contrato; ou também deveriam caber à empresa tomadora, local de sua verdadeira vivência? A Lei afirma que os direitos trabalhistas devem ser garantidos pela empresa prestadora, ficando a empresa tomadora apenas incumbida de algumas delas: o recolhimento da contribuição previdenciária, posteriormente descontado no valor pago à terceirizada (Lei 8.212/1991, Art.31); a garantia de acesso aos mesmos treinamentos, materiais e normas de segurança e saúde no trabalho que os contratados diretos (Lei 13.467/2017, Art. 4°C). Já o atendimento médico, ambulatorial e o oferecimento de refeição permanecem facultativos à contratante (Lei 13.429/2017, Art. 5° A, parágrafo 4° A). No entanto, não se pode esquecer que, quando se trata da administração pública, esta somente é obrigada a assegurar o que é garantido em lei, logo, a possibilidade jamais se torna realidade.
Para os demais direitos, a responsabilidade da contratante é apenas subsidiária, ou seja, ela só deve ser acionada se a prestadora de serviço provar impossibilidade de arcar com eles. Isso significa dizer que, no caso dos terceirizados que prestam serviço nos órgãos públicos e deixaram de receber um direito básico, por exemplo, como horas extras, quando estes acionam a Justiça do Trabalho para reaver seus direitos, a administração pública não é sequer chamada a tomar parte, a não ser após a empresa prestadora provar que não poderá de forma alguma arcar com essa responsabilidade, como no caso de falência.
Por mais que possa parecer, dessa maneira, uma solução até justa, já que é expressa a inexistência de vínculo empregatício entre o terceirizado e a contratante do serviço (Lei 13.467/2017, Art. 4°-A, parágrafo 2°), deve-se levar em consideração, primeiramente, a própria natureza estranha dessa “não vinculação”, já que segundo a Lei 8.112/1990, que determina o Regime Jurídico dos Servidores Públicos Civis da União, é servidor público aquele investido em cargo previsto na estrutura organizacional da administração pública; em segundo lugar, ainda deve-se considerar o tempo que o trabalhador levará para receber finalmente os direitos que lhe foram usurpados, sabendo-se que um processo como esse leva cerca de dois anos. Com certeza, um longo tempo de aguardo para trabalhadores que em geral recebem uma baixa remuneração, até pela natureza das atividades que exercem, que são as mais precarizadas, para as quais se forma um exército de reserva, sendo constantemente ameaçados pela alta instabilidade de seus empregos. Nesse sentido, a administração pública deveria ser pelo menos chamada à responsabilidade solidária, em que dividiria, então, esse encargo com a empresa prestadora do serviço, para não deixar o trabalhador à mercê da lógica do lucro.
O que fica, então, realmente a cargo da administração pública no que tange aos direitos dos trabalhadores terceirizados em seus órgãos? Segundo a Súmula nº 331 do Tribunal Superior do Trabalho, cabe a ela a fiscalização do cumprimento das obrigações sociais e previdenciárias pela empresa prestadora, função que deve ser exercida em cada órgão que tenha contratos vigentes e, no caso de abertura de processos trabalhistas contra a empresa contratada, cabe também ao ente público provar que realizou essa fiscalização (o que foi inserido na súmula apenas em 2020, após uma decisão judicial envolvendo o Estado do Rio de Janeiro). Caso não o faça, a administração pública pode vir a ser chamada a cumprir sua responsabilidade subsidiária. De qualquer forma, recai novamente na questão de que ela só se responsabiliza depois de esgotadas as possibilidades de a empresa prestadora arcar com essas obrigações. É preciso, por isso mesmo, que a fiscalização dos contratos seja realmente efetuada no âmbito do órgão público, evitando problemas futuros ao trabalhador, que não precisará recorrer judicialmente.
Na tentativa de amenizar os altos riscos de inadimplência trabalhista desse tipo de contrato, que se baseia propriamente na precarização do trabalho, foi criado em 2012, o Banco Nacional de Devedores Trabalhistas. A partir de então, para concorrer a qualquer licitação pública, a empresa deve apresentar uma Certidão Negativa de Dívidas Trabalhistas, emitida pelo Poder Judiciário Trabalhista, a qual confirma que ela não está com seu nome nesse Banco, ou seja, que não está devendo valores referentes a direitos trabalhistas. Ela só não conseguirá a Certidão, porém, se os processos já tiverem chegado ao fim, sem mais possibilidade de recurso, e não tiver pago essas obrigações reconhecidas nas sentenças ou acordos judiciais, com o Ministério Público do Trabalho ou Comissão de Conciliação Prévia. Mesmo assim, é um dispositivo importante que, enquanto a terceirização não é derrubada, tende a diminuir os riscos de que empresas já reconhecidamente violadoras de direitos trabalhistas venham a conseguir novos contratos, principalmente baseados na oferta de baixos preços às custas de dívidas com seus próprios funcionários e ex-funcionários. De qualquer maneira, a efetividade desse mecanismo legal não pode deixar de ser averiguada e aprimorada.
Conclusão
É visível como, nas últimas décadas, quanto mais cresce a terceirização, menos se garantem os direitos trabalhistas, o que evidencia o processo de precarização acentuada. Os ataques a esses direitos, promovidos pelo Estado neoliberal, acontecem, é certo, para todos os trabalhadores, mas quando se trata de terceirizados a questão é ainda mais delicada, pois conta-se justamente com seu vínculo empregatício frágil: seja pela empresa empregadora, que, sabendo da formação certa de um exército de reserva para o preenchimentos das vagas, oferece baixos salários e conta mesmo com isso e com as brechas da lei para garantir o próprio lucro; seja pela empresa tomadora, no caso, os órgãos públicos, que negam qualquer vínculo e só são chamados à responsabilidade em último caso.
A terceirização, assim, é apenas um mecanismo para baratear o custo do trabalho, esvaziado da sua dimensão humana e social. No serviço público, ele é ainda mais estranho, pois descaracteriza completamente o caráter deste, que é propriamente o investimento na garantia dos direitos sociais, e não faz sentido que ele mesmo promova, dentro de sua estrutura, a negação desses direitos ao não garantir a dignidade do trabalhador.