O baile da vergonha: resenha de “Destruição da Arquitetura”

“É necessário tornar a opressão real mais opressiva ainda e tornar a vergonha mais vergonhosa, mostrando-a em público”. Isso escreveu Karl Marx em 1846. Isso fez Danilo Matoso em 2022.

por Raul Floriano

No cair da noite de 27 de outubro de 2022, passou despercebido à esquerda brasileira um fenômeno discreto, mas que não era de se negligenciar. Tudo bem: o medo legítimo, a dedicação vigorosa e as tarefas inadiáveis que rondavam a luta pela segunda reeleição do presidente Lula justificavam o descuido. Em 14 de janeiro desse ano, porém, o erro se repetiu: novamente se repercutiu pouco o lançamento de uma obra que era digna de atenção.

Nesses dias, era lançada, no canal da Ruptura Editorial, o volume “Destruição da Arquitetura: crônicas políticas de um país em demolição”, do arquiteto e camarada Danilo Matoso Macedo. As 600 visualizações que os lançamentos virtuais alcançaram não fizeram jus ao valor do título que pretendo, no limite de meu conhecimento, agora resenhar.

Contrariemos, de saída, o dito popular, e julguemos o livro pela capa, desvelando logo aí sua importância. A ilustração provocadora de Catherine Calognomos, em estilo de colagem, joga contra um azul celeste bestializado a dessintonia do Congresso Nacional, que se equilibra, instável, entre um Palácio Capanema enviesado e uma Estação da Luz empinada, quase dando um grau sobre um Pacaembu despedaçado: é o próprio patrimônio brasileiro em frangalhos sob o céu silencioso de sua capital – a materialização sensível do tema inteiro da obra.

Não é tudo: a quarta capa vem assinada pelo inconteste Fernando Morais, ex-secretário de cultura de São Paulo, que define o livro como “leque multicolorido das virtudes e misérias de se viver no Brasil”. Já o prefácio, também elogioso, sai escrito por Andrey Schlee*, nada menos que o antigo e atual diretor do Departamento de Patrimônio Material do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), órgão agora redivivo. Mas nem só de capa viverá o livro: ao miolo!

Destruição da urbanidade em 27 capítulos

O livro é construído por 27 crônicas selecionadas entre as contribuições do autor ao site político-humorístico O Partisano, cujas tropas “irregulares, sem regulação nem regularidade” contavam com o reforço de Danilo e de seu coeditor, William Dunne, que assina a orelha da obra.

Lendo-as na ordem cronológica, saboreamos a sensação de acompanhar as reações instantâneas de um especialista erudito e mordaz, que assiste revoltado ao presidente Bolsonaro cumprir sua missão americanizada de “desconstruir e desfazer muita coisa no Brasil” em sua área de atuação. Ao relatar a destruição do patrimônio brasileiro, de suas cidades e de sua arquitetura, de seu urbanismo e de nossa urbanidade, Danilo nos faz embarcar em uma viagem de referências históricas e conceituais que sublinham o descalabro do que ocorria à nossa frente pelos últimos quatro anos.

É assim que, para evidenciar o absurdo da privatização da água e do saneamento básico, o autor resgata a história dos escravos-tigres, esses “tristes operários do labor imundo”, ocupados em carregar nas costas os excrementos de seus senhores (p.55). É assim que, para pensar os horrores do confinamento e da sobrevida ilegítima dos “quartinhos de empregada”, somos apresentados aos conceitos da cozinha de Frankfurt de Schütte-Lihotzky (p. 34), das máquinas de morar da arquitetura moderna (p. 68) e do Existenzminimum dos arquitetos alemães da década de 1920 (p. 69).

Erudita sem pecar por eruditismo, a obra nos permite, assim, ir ganhando familiaridade com os mais improváveis conceitos, em uma teia de relações que resiste à superioridade automatizada da inteligência artificial de nossos tempos. É refletindo sobre a realidade presente que aprendemos sobre o destino dos frisos do Paternon (no contexto do exílio dos acervos de Paulo Mendes da Rocha e de Lúcio Costa); sobre a 3ª geração modernista da arquitetura no Nordeste (diante da iminência de um crime contra o patrimônio na UFPB); sobre a teoria do espaço defensável de Oscar Newman (em texto de resistência à arquitetura hostil de nossas capitais); e sobre mais tantos temas clássicos de nossa história: da tese das três raças de Martius (p. 140) à missão Cruls (p. 104); das obras de Niemeyer – nas quais o autor é notório especialista – ao brutalismo de Artigas (p. 82).

Se a contextualização das referências não bastasse para nos convencer que não estamos diante de uma erudição meramente livresca, o autor nos dá ainda a todo tempo a prova contrária, cabal: a coragem da opinião controversa. Deve ser lida assim a afirmação, sem volteios, de que Oscar Niemeyer foi o maior arquiteto brasileiro de todos os tempos (p. 198). Ou também, sem matizes ou titubeio, a declaração em favor da arquitetura portuguesa como a melhor da contemporaneidade (p. 239). Simples assim.

Nessa terra de ousadia de juízos é que grassa o pensamento original. E, em um livro que tem a política revolucionária como farol, é preciso que o pensamento se transmude em análises, ainda que a extensão dos textos não permita maiores elaborações. Leio nesse sentido os conceitos surgidos quase à socapa, bem-humorados, que salteiam o texto aqui e ali sem deixar de apontarem para uma leitura apurada da conjuntura.

Exemplo que perpassa toda a obra é a proposta de se pensar a política cultural de Bolsonaro sob dois vetores principais: de um lado, a “desidratação por escárnio” (p. 184) promovida por capitães do mato na Fundação Palmares ou por atores putrefatos na Secretaria de Cultura; de outro, a “política cultural de direita” (p. 179), ativa mas não altiva, capitaneada por um chanceler amalucado e por monarquistas fora do lugar e do tempo (p. 147).

No entanto, a compreensão da urdidura política que atravessa esse tal leque multicolorido de crônicas exige a atenção a outro fundamento subjacente à “Destruição da Arquitetura”: o marxismo.

Fundação da obra: o marxismo na “Destruição da Arquitetura”

Sabe-se que o método marxista, se compreendido e incorporado, perpassa toda a cosmovisão de um indivíduo. Dizem até que, caso alguém leia e compreenda os três volumes d’O Capital, o mais adequado seria fazê-lo requisitar novo RG e CPF. E sei que Danilo os leu. Julgo que os compreendeu.

É por essas lentes que o autor – avesso a purismos idealistas e ideológicos – julga a arquitetura como inescapavelmente política, uma vez que tem como função justamente conformar o espaço público (p. 219). Assim, o ofício da arquitetura não dever ser apenas pensado em função do povo: afirma-se como meio de comunicação das massas por excelência (p. 247). Também por isso, a precarização da moradia não seria acidental, mas, antes, engrenagem do sistema: é um dos fundamentos da pauperização do proletariado, permitindo a redução dos salários ao mínimo necessário a uma condição não mais que sub-humana de habitação (pp. 33, 44). Eis aí os pressupostos de que parte toda a obra, apresentados com discrição em alguns de seus capítulos.

Nessas raras ocasiões em que Danilo se permite refletir teoricamente sobre seu tema em nível maior de abstração, a escrita transpira sua filiação marxista, mas não só: em todas as crônicas há certa ordem que repete a forma de pensamento do filósofo alemão. Cada texto adota estrutura simples e elegante – como os traços dos mais de 30 croquis que a pena multíplice do autor também se ocupou em nos brindar – que poderiam ser assim descritos: uns poucos parágrafos lançam os fundamentos do tema, duas ou três seções do texto investigam a fundo a estrutura e a essência do objeto descrito, e uma seção final envelopa o tema com humor, como um verso-arremate.

Nas seções medianeiras, a estratégia de Danilo é justamente a de investigar historicamente as relações do objeto tratado, de maneira a relacioná-lo com as totalidades de nossa formação social, superando sua aparência e descrevendo sua essência. Os exemplos abundam. Sua análise da tragédia em Maceió, em que a Braskem fez afundarem cinco bairros da cidade, é emblemática: para compreender o fenômeno em sua completude, o autor navega desde o histórico da ocupação holandesa da região até a elevação à consciência de que a tragédia é feita pelas mãos e ferramentas do ser-humano – pela perfuratriz, pela água aquecida, pela dissolução do sal petrificado, pela busca do sal-gema para produzir e vender soda cáustica e celulose, vidro e pasta de dente (p. 326).

Como em Marx, deriva também dessa desfetichização do trabalho e das relações sociais as mais belas passagens da obra. Assim, ao descrever a fotografia de arquitetura, em encômio à colega Joana França, Danilo quase verseja: “Essa retificação do desenho, se podemos chamá-la assim, implica determinadas relações entre as margens retas como as de uma folha de papel, as verticais dos edifícios cortando a talhos de esquadro a força da gravidade, as horizontais feitas a régua paralela a multiplicar em pavimentos a planta de rés-do-chão” (p. 121).

É pena que o marxismo presente na obra não teve fôlego para avançar reflexões que ficaram a meio caminho, só esboçadas. Fica a promessa para um livro futuro, em que o autor talvez consiga agarrar o touro pelos cornos, para nos explicar como os “desenhos dos arquitetos seriam a conexão do autor com a obra construída e, por isso, um instrumento dialético em que se situa, por assim dizer, a alma de seu labor”. Não sei se entendi. Mas é belo.

A pena da galhofa

A última marca incontornável do texto arquitetado por Danilo também faz eco ao estilo marxiano: trata-se de sua verve humorística. Natural em um período horrendo da história brasileira, a tinta da melancolia cede aqui espaço à comicidade ácida, que ganha sabor de alívio ao empreendermos a leitura só agora, após o resultado das urnas em 30 de outubro de 2022 – devidamente anunciado por William Bonner e seu latão de Brahma.

Os toques irônicos pululam durante o texto: falo da descrição da avenida Berrini como projeto para inviabilizar a vida humana (p. 132); da alcunha de Pequeno Príncipe dada ao deputado Luiz Philippe de Orleans e Bragança (p. 146); da descrição dos glúteos avantajados do ridículo touro da Bolsa de Valores de São Paulo como indício de que estaríamos diante de um faria limer bovino (p. 288); da renitente tradução do brado paraquedista “Brasil acima de tudo” para o alemão, recordando-nos de sua inspiração nazista.

Divertem mais, contudo, as tiradas que saem diretamente da escola marxista do humor. Derivam da crueza da realidade obtida após o desnudamento das aparências: encarado a frio, aquilo que existe tende ao absurdo hiperbólico, causando surpresa e, com ela, humor. É o movimento que permite o autor vislumbrar, na privatização das águas, uma oportunidade para se desenvolver apps de tigres, que buscariam a domicílio os excrementos dos burgueses (p. 62). Ou então, é o que nos permite ver que a rede de comunicação bolsonarista tenta, ao fim e ao cabo, reescrever a história com correntes de whatsapp (p. 84). Ou é aquilo que nos mostra que o exílio do acervo de Lúcio Costa em Portugal, decidido por sua neta, equivale a tratar os documentos de criação da capital do país – patrimônio da humanidade – como notas pessoais do vovô. (p. 251).

À divisa horaciana de que é rindo que se corrigem os costumes, o camarada Danilo preferiu em suas páginas o mandamento de Marx de que é preciso envergonhar a vergonha. De que “é necessário tornar a opressão real mais opressiva ainda, acrescentando-lhe a consciência da opressão, e tornar a vergonha mais vergonhosa, mostrando-a em público”. De que é tempo de “pegar as condições sociais petrificadas e forçá-las a dançar, obrigando-as a ouvir a sua própria melodia”. De que “é necessário ensinar o povo a ter medo de si próprio, para lhe dar coragem”.

Esse baile da vergonha bolsonarista foi cruamente exposto na Destruição da Arquitetura. Cabe-nos agora aproveitar o momento histórico para, ao lado do povo, pensar os caminhos de nosso avanço. Danilo já demonstrou ser capaz de vislumbrá-los. Brindemo-lo com nossa presença no lançamento, agora presencial, de sua obra aqui em Brasília. Comecemos ali a construir – e a dançar – o baile da vitória.


Em Brasília, a obra Destruição da Arquitetura será lançada na quinta, dia 16 de março, às 18h30 no Auditório 2 do Museu Nacional da República (Setor Cultural Sul). A todos que chegarem essa resenha, chega também a convocação para comparecer.

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