A Revista O Ipê sentou com o deputado distrital Max Maciel (PSOL) para discutir portaria sobre créditos de vales-transporte, mobilidade urbana e participação popular no DF
por Mateus Cavalcante (atualizado 03/03/2023 11:23)
O governo de Brasília, por meio de sua secretaria de mobilidade, publicou em seu Diário Oficial, no dia 31 de dezembro, a Portaria n.º 35/2023, estabelecendo validade de 12 meses para os créditos do cartão de vale-transporte ou cartão mobilidade. Mas o que isso significa na prática? A revista O Ipê conversou com o deputado distrital Max Maciel (PSOL-DF) para entender a medida e suas consequências práticas e políticas. O deputado, que possui conhecida militância em sua cidade natal, Ceilândia, foi eleito com uma das maiores votações do Distrito Federal, além de possuir ampla trajetória de luta pela mobilidade urbana.
A origem da portaria
A origem da questão pode ser remontada a uma constatação simples: a secretaria de mobilidade do Distrito Federal (SEMOB-DF) identificou uma quantia de dinheiro “parado” no sistema de vales-transporte. Isso pode ter ocorrido por uma série de motivos: as pessoas podem ter deixado de usar o cartão e simplesmente esquecido de possuírem créditos armazenados por lá; pode ter havido redução de deslocamentos e, portanto, de gasto dos créditos durante a pandemia; e até mesmo o falecimento da dona ou dono do cartão pode contribuir para explicar os créditos parados.
Visando a dar destino útil a esses créditos, a SEMOB-DF visou regulamentar um prazo de validade para eles. Dessa forma, os créditos que não forem utilizados no período de um ano serão destinados à “manutenção do equilíbrio econômico-financeiro do Sistema de Transporte Público Coletivo (STPC/DF), visando à modicidade tarifária”. Traduzindo, seriam apropriados pelo Governo do DF.
Parece razoável, à primeira vista, querer evitar que o dinheiro fique parado e seja desperdiçado. Afinal, são cerca de 75 milhões de reais ociosos desde 2011, conforme nos precisou o deputado. Mas ele faz questão de frisar: esse dinheiro não pode ter outra finalidade que não a de garantir o transporte dos trabalhadores ao seu local de trabalho. Ou seja, esse dinheiro não poderia retornar às donas e donos dos cartões que os alocariam em qualquer outra destinação, como comprar itens no supermercado, por exemplo. Essa questão já teria sido regulamentada pela Lei nº 12.587/2012, explicou o deputado.
Quais as críticas à portaria da SEMOB?
Superficialmente, do ponto de vista de um gestor focado apenas em garantir mais recursos para sua pasta, não haveria nenhuma crítica à portaria. Mas para Max, que já teve que andar muito de ônibus pelas ruas do DF, é preciso ter em conta a visão da população: a vida de quem pega ônibus tende a ser corrida. Longos trajetos, que se demoram por horas em ônibus precários e superlotados.
Dito isso, soa cruel a tentativa de aproveitar que muitas pessoas se esquecem ou são impossibilitadas de usar seus créditos para garantir uma “renda extra anual” para a SEMOB. Esse recurso pertence às pessoas, que ou compram o cartão com seu próprio dinheiro, ou contribuem com o empregador no pagamento de seu direto trabalhista. Não é benesse estatal, como aponta o deputado Max Maciel na justificativa do PDL 3/2023, em que ele propõe suspender os efeitos da portaria:
“Ao usuário deve ser facultada a utilização do transporte e dos créditos do SBA (Sistema de Bilhetagem Automática) quando melhor atender sua necessidade, de forma que, não se tratando de gratuidade na passagem tarifária, não há que se falar em desequilíbrio para o sistema de transporte”.
Isto é, no projeto apresentado por Max Maciel e Paula Belmonte (Cidadania), defende-se que cabe ao cidadão decidir a destinação desses recursos, uma vez que não se trata de ajuda do governo aos trabalhadores.
Outro problema evidente que transparece na edição da portaria é a falta de diálogo com a sociedade. Como pode o governo considerar se apropriar de recursos dos cidadãos sem antes estabelecer um diálogo? É direito de todos os usuários do sistema de transporte fazer parte do planejamento, da fiscalização e da avaliação da política local de mobilidade.
Além de ser uma questão de justiça e participação popular, é exatamente isso o que diz a Lei Federal n.º 12.587, de 3 de janeiro de 2012, no seu artigo 14, inciso II: “são direitos dos usuários do Sistema Nacional de Mobilidade Urbana participar do planejamento, da fiscalização e da avaliação da política local de mobilidade urbana”.
A participação do povo na definição de políticas públicas
Diante disso, perguntamos ao deputado Max Maciel: “Como a população poderia se engajar mais nesse debate?”
Rapidamente, como em um reflexo, o deputado responde: “Esse é um dos nossos principais desafios”. Sua expressão, então, muda: deixa transparecer que o problema já é íntimo de seus pensamentos. Ele se ajeita na cadeira e continua rumo ao esboço de uma solução: “É preciso que existam conselhos regionais de transporte”. O deputado explica que, apenas dessa forma, torna-se possível mobilizar os usuários, os trabalhadores do transporte e o povo em geral para debater a política de mobilidade – “para além da questão do cartão”, complementa o deputado.
Em uma democracia, a participação popular no exercício do poder estatal é essencial para garantir não só alguma legitimidade real a esse poder, como também para evitar autoritarismos e ações benéficas unicamente para os mais ricos e poderosos. Indo além, é a construção do poder popular — isto é, a construção de espaços que permitam que decisões que afetem a coletividade sejam fruto da deliberação do próprio povo acerca do que ele deseja para si mesmo – que permitiria gestar uma verdadeira democracia popular. No processo de sua construção, criar instâncias que deem voz não só para a opinião, mas também para a decisão do povo, é fundamental.
Infelizmente, ainda não temos, constituído no DF, um Conselho Regional de Transporte. Contudo, felizmente, o deputado Max Maciel é o atual presidente da Comissão de Transporte e Mobilidade Urbana na Câmara Distrital, e está atento e em luta por essa pauta — muito antes, inclusive, de se tornar deputado, como nos contou durante nossa conversa.
A luta por um conselho popular de transportes é, assim, o primeiro passo na construção de um DF que sirva a seu povo. E não há espaço para esmorecermos nessa luta. Afinal, é importante lembrar: tudo que garante direitos e dignidade para as pessoas, em nosso atual sistema democrático, é fruto da luta histórica de trabalhadoras e trabalhadores. O direito ao voto, à organização, à liberdade de imprensa, à aposentadoria, à jornada de 8 horas de trabalho, ao acesso à saúde, ao salário-mínimo e o próprio direito ao Vale-Transporte são só alguns dos infindáveis exemplos de que é a luta dos trabalhadores que constrói sua própria dignidade.
Quais são os próximos passos?
Além do PDL 3/2023, que visa suspender os efeitos da portaria, o deputado distrital apresentou o Projeto de Lei (PL) 125/2023. O projeto garantirá a possibilidade de revalidação dos créditos, permitindo a extensão do prazo para sua utilização. Exige ainda que, no caso de créditos já apropriados pelo Estado, os recursos sejam usados para garantir e/ou aumentar a gratuidade do transporte para a população.
Mas, como não deixou de sublinhar o deputado, a luta não se restringe à atuação parlamentar. Repisando a importância da participação popular no debate, aproveitou para estender um convite: dia 3 de abril ocorrerá, na CLDF, audiência pública sobre o transporte para a Universidade de Brasília (UnB) e para os Institutos Federais de Brasília (IFB). É possível se inscrever para participar através dos links dos formulários. Enquanto não conseguimos constituir o Conselho Regional de Transporte, as audiências públicas ainda constituem oportunidades importantes para a população participar e fiscalizar o governo.
Sabendo que apenas a luta por direitos consegue garantir direitos, é promissor que um de nós esteja efetuando a luta “por dentro”, no parlamento distrital. Que a chegada do primeiro deputado “aba reta” na CLDF, como o Max gosta de repetir, seja o início de uma tomada da casa do povo pelo povo. Por aqueles que dependem do transporte de ônibus, que enfrentam as filas do SUS, que passam pelo sistema público de ensino – e que sonham com um DF mais justo e mais popular. Afinal, a maior riqueza de Brasília nunca foi apenas seus traços arrojados ou sua utopia modernista: foi sempre seu povo, que a construiu.
Atualização
No dia 27 do mês passado, o GDF anunciou que iniciaria a confiscar os créditos de vale-transporte no dia 2 de março. Porém, no dia 1 desse mês, a CLDF aprovou regime de urgência para dois decretos legislativos para sustar a medida. O deputado Max fez um pronunciamento na CLDF apontando para a ilegalidade da medida. Com a pressão, o governo recuou e adiou a data em 30 dias.