Uma História de Natal para não esquecer: impressões do filme “Padrinhos de Tóquio”

O Ipê acompanha a quarta edição do Kinoprestes, sessão que exibiu “Padrinhos de Tóquio”, um clássico anticapitalista sobre a opressão e a alienação.

por Carlão

Foi exibido, no dia 31/01/2023, na sede brasiliense do Partido Comunista Brasileiro (PCB), o filme “Padrinhos de Tóquio” (Tôkyô Goddofâzâzu – Tokyo Godfathers) (2003), de Satoshi Kon. Tratou-se da quarta edição do evento chamado Kinoprestes, que ocorre às terceiras terças-feiras de todo mês, e já contou com a exibição de “Eles vivem” (John Carpenter, 1988), Trem Baiano (Robson Calvalcante e Claudemir Silva, 2016) e “O homem que virou suco” (João Batista de Andrade, 1980).

O autor

O filme é uma fita de anime do legendário realizador, Satoshi Kon, falecido em 2010. Tendo começado como desenhista de mangás, partiu depois para os animes (“animês”), campo em que galgou seus maiores sucessos. Neste trabalho, ele nos brindou com sua arte e foi compondo um estilo, digamos, mais “realista”: não navegou pelos aspectos puramente oníricos como anteriormente em suas obras, mas não realizou, por isso, uma viagem menos emocionante ou menos deslocada do improvável, vale dizer!       

Sinopse

A noite de natal em Tóquio abriga três moradores de rua que encontram, entre o lixo jogado nas vielas da metrópole, um bebê abandonado. Em meio às discussões que se desenrolam entre eles e as pequenas gotas de neve que caem na capital asiática, assistimos, então, a esse pequeno grupo de rejeitados decidindo partir para uma jornada em busca dos pais da criança.

Progressão pela cidade

Os traços de Satoshi e suas cores carregadas para o cinza dão um tom gélido e provocativo à ambiência, que não esconde, porém, a comicidade. Ela está presente, leve, e é componente absoluta da odisseia da turma. Esta é composta por uma mulher trans, a ‘Hanna’, um desabrigado chamado ‘Gin’, e pela ‘Miyuki’, uma adolescente que foi rejeitada pela família de classe média.

Todos terão suas vidas reveladas pelo roteiro – coescrito por Satoshi – em inserções oportunas dentro da narrativa: um ponto alto da animação. O diretor mantém a caricatura dos personagens sem apelar para o over, retratando sem exageros seus maneirismos: vai apenas conquistando o público com o humor ligeiro dos três.

A questão familiar está presente em todos do trio. ‘Hanna’ sonha com uma família e vê no resgate da criança um sinal que lhe parece divino. ‘Miyuki’ lamenta algumas atitudes que tomou e a ocorrência de um fato que fez desmoronar sua relação com o pai. Finalmente, ‘Gin’, cético da composição familiar, rejeita, a princípio, qualquer novo rearranjo caseiro e íntimo.

No entanto, o acontecimento do encontro com o bebê abandonado dá sentido de união ao grupo, agora com objetivo e propósito, ainda que sujeito às intempéries, que serão diversas. Centrado nessa minúscula coletividade, munida de um transformador sentimento de vontade em acertar, os conflitos do grupo progridem o filme pela capital japonesa.

Japão não cristão, mas invadido pela ocidentalização consumista

Um dos aspectos bastante peculiares do filme de Satoshi é representado por sua escolha de contar uma história de natal em um Japão nem um pouco cristão, mas inundado de mensagens típicas da ocidentalização puramente consumista. Dispostas em vários neons abundantes, percorrendo os famigerados anúncios capitalistas, essas mensagens contrastam com o bom sentimento dos protagonistas.

A estratégia de criar tensão entre um ambiente hostil e certa boa intenção dos protagonistas fica reforçada pela indiferença da população frente ao trio oprimido, tropo repetido em várias passagens do anime. Em uma delas, vemos um médico aconselhar ‘Gin’, instruindo-o a praticar mais exercícios e a ter uma alimentação saudável. Em uma cena hilária, o protagonista repele imediatamente o conselheiro indesejado. Em outra, o trio é recebido em um ônibus com a tapação generalizada e cômica do nariz dos passageiros, a reclamarem do cheiro.

 A hostilidade do meio vai se aguçando ao longo do filme, e chega a atingir inclinações tipicamente fascistas, reveladas na ação de certos moradores que surram ‘Gin’ enquanto vomitam discursos de “limpeza”. Trata-se de uma escalada de hostilidade em direção ao fascismo que ainda está, infelizmente, próxima demais de nossa realidade: uma camarada – durante o debate que se seguiu ao filme – fez a oportuna menção ao caso do índio Galdino, morto em Brasília por cinco jovens do Plano Piloto, em 1997. Não faltariam exemplos.

Esses contrastes e revelações feitos com qualidade ao longo do filme, ambientado em meio às comemorações natalinas ocidentalizadas e em um Japão profundamente capitalista, deram ao roteiro de Satoshi material para que o público refletisse além do que é simplesmente mostrado. Ao lado do consumo fetichizado e compulsivo de mercadorias durante o natal, o autor põe em questão a própria espiritualidade humana – não necessariamente ligada à determinada religião – que é abordada de maneira implícita ou mesmo explícita nas falas dos personagens e na própria arquitetura da cidade “em festa”.

Para um grupo de despossuídos, jogados na frieza do natal japonês, a reflexão sobre espiritualidade ganha contornos classistas: que oportunidade teriam os protagonistas de pensar acerca de seu propósito e sentido na vida? Foi preciso que um bebê nascesse como um McGuffin em suas vidas para que para eles surgisse também um propósito.

Redenção, alegorias, luzes e vento

O anime de Satoshi apresenta ação, humor, reviravoltas e uma convergência de “coincidências”, que escalam a própria jornada dos três personagens, num ritmo eletrizante e que satisfaz ao seu final. Considero, assim, que o cartoon de Satoshi Kon foi uma feliz escolha com que o PCB-DF nos brindou.

O proposital “esquecimento” dos oprimidos liberta os donos do capital a um tratamento irrestritamente desumano em relação a eles. A humanidade do mestre japonês, todavia, não deixou escapar os nobres sentimentos vindos deste nosso trio de esquecidos e rejeitados. Com sua arte, e armado com originalidade, retratou seus sonhos e aspirações, justamente na noite de natal. Sem pieguice. A comédia funcionou, bem como as cenas de perseguição que pouco devem às melhores live actions. Emocionou.

E o uso das luzes em brilhantes resoluções a par e passo do toque genial do uso do vento, em várias cenas, ora negativas, ora positivas, revelaram ainda todo o arcabouço técnico e criativo dessa obra de Satoshi.

Tantas vezes nos perguntamos como projetar soluções que vão à raiz dos problemas que tendem a se repetir nas grandes metrópoles, selvagemente capitalistas, sem que a reflexão teórica nos turve a sensibilidade para nós mesmos, personagens desses problemas. Um diagnóstico feito pela arte de lendários realizadores é sempre um bom começo.

Ps.: A obra pareceu-me inspirada em um filme de 1948, com John Wayne, chamado “3 Godfathers”, de John Ford. Não é ruim, mas prefira o anime de Satoshi!

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