A vitória de Lula nas disputas presidenciais, derrotando o projeto neofascista de Bolsonaro, dá fôlego para reestruturação da política indigenista brasileira e apresenta novos desafios
Por Emiliano Gonçalo
A Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), seus servidores e os povos originários no Brasil têm desafios importantes pela frente, que ganham nova margem de manobra a partir da vitória de Lula para seu terceiro mandato presidencial. Vamos destacar alguns aspectos desse cenário, na tentativa de refletir sobre a herança maldita do governo passado e apontar aspectos atuais da luta indígena e indigenista.
Recentes avanços das lutas indígenas e indigenistas
Marcada por uma postura anti-indígena e anti-indigenista, a gestão que o delegado da Polícia Federal, Marcelo Xavier, exerceu na Funai durante o governo Bolsonaro deixou profundas sequelas, cuja superação exigirá mobilização constante dos povos indígenas e servidores do órgão. A Indigenistas Associados (INA), associação de servidoras/es da Funai, em parceria com o Instituto de Estudos Socioeconômicos (INESC), lançou, no dia 13/06/2022, a publicação “Fundação Anti-indígena: um retrato da Funai sob o governo Bolsonaro”.
O documento é resultado de um monitoramento da política pública indigenista do último governo. Nele são descritos e analisados os mecanismos que a gestão anterior da Funai utilizou para constranger servidores e subverter princípios constitucionalmente assegurados da política indigenista brasileira. Com esse intuito, realizou-se coleta e análise de documentos oficiais e falas públicas dos então gestores do órgão.
Tendo como gota d’água o assassinato do servidor Bruno Pereira, na região do Vale do Javari, os servidores da Funai entraram em estado de greve, realizando algumas paralisações nacionais no segundo semestre do ano passado. A luta foi travada pelas duas associações de servidores, INA e Ansef (Associação Nacional de Servidores da Funai), que somaram forças com o Sindicado dos Servidores Públicos do Distrito Federal (Sindsep-DF).
A partir dessa luta unificada, o movimento conseguiu abrir negociações, mediadas pelo Ministério Público do Trabalho, com a gestão do órgão indigenista de modo a pautar e garantir aspectos fundamentais do exercício da missão institucional da Fundação, tais como: implementação de força-tarefa para dar suporte aos servidores no Vale do Javari; regulamentação do valor das diárias durante trabalho de campo em terras indígenas; e regulamentação de escala para servidoras/es que necessitam passar longos períodos em bases de proteção etnoambiental. Atualmente, as entidades representativas do órgão indigenista também apoiam a proposta, reabilitada durante o movimento de greve, do Plano de Carreira Indigenista e do Plano Especial de Cargos.
Mais recentemente, no dia 03 de fevereiro, a advogada Joenia Wapichana assumiu oficialmente a presidência da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai). É a primeira vez que o órgão indigenista federal é presidido por uma mulher indígena. Segundo a própria página da Funai: “[a]s maiores organizações indígenas estiveram presentes no evento celebrando a conquista de mais um espaço de poder, entre elas, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) e associações a ela vinculadas, como a Articulação dos Povos Indígenas do Sudeste (Arpinsudeste), Conselho dos Povos Indígenas de Mato Grosso do Sul, e pela Grande Assembleia do Povo Guarani (ATY GUASU), Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (Apoinme), e outras”.
Apesar dos avanços da luta – mais que legitimamente celebrados – os desafios dessa gestão possuem aspectos inéditos, no que tange ao movimento indígena, e ressaltam a importância da organização da classe trabalhadora para, ainda que minimamente, conter os avanços do capital sobre direitos trabalhistas, indígenas e ambientais resguardados pela constituição.
Desafios atuais da frente amplíssima.
A última corrida eleitoral, democraticamente disputada, foi especialmente acirrada por diversos fatores: a divisão da sociedade brasileira promovida pelas táticas e técnicas do projeto neofascista de poder; os efeitos perversos da operação Lava Jato e do anti-petismo, expressões do aparelhamento burguês da consciência do povo; a instrumentalização de benefícios e aportes sociais às vésperas da eleição, entre tantos outros. Diante desse trágico cenário, o atual governo federal busca cooptar os movimentos sociais para apoiarem seu projeto de conciliação de classe, enquanto, do outro lado, os golpistas e a oposição midiática seguem enquadrando o governo eleito com atos de vandalismo e propagação de terrorismo sobre a pauta econômica – tudo no intuito de frear quaisquer avanços nas pautas sociais (salário mínimo, reforma trabalhista, imposto progressivo, reforma fiscal, teto de gastos, responsabilidade fiscal etc.): promessas de campanha da chapa vencedora. A manutenção da taxa de juros pelo Banco Central e a repercurssão desse debate da mídia exemplificam essa manobra de enquadramento.
O movimento sindical organizado pela Central Única dos Trabalhadores (CUT) já começou a receber pedidos de paciência e confiança, evitando cobranças duras ao governo nesse período inicial de mandato. Como já vimos ocorrer anteriormente, tais pedidos se chocam com as pautas que os movimentos, a duras penas, conseguiram levantar durante a gestão neofascista de Bolsonaro, gerando desgastes dentro dos sindicatos, associações e diversos estratos da classe trabalhadora. O movimento indígena, pela primeira vez participando do governo federal, vai enfrentar o mesmo dilema de manter as reivindicações das bases (demarcação territorial, exploração mineral e agronegócio em terras indígenas, marco temporal), correndo o risco de enfraquecer as figuras que, vindo do movimento, hoje fazem parte da gestão.
O desafio de fortalecer as pautas progressistas que forem avançadas pelo governo, dadas as promessas de campanha, sem abrir mão de representar os interesses da classe trabalhadora acima da voracidade do capital, será um aprendizado importante no que diz respeito à manutenção da unidade na luta, seja por parte dos trabalhadores organizados, seja por parte das bases do movimento indígena.
Genocídio Yanomami, feridas abertas.
Outro desafio da luta que se coloca diante de nós pode ser apreendido a partir da tragédia que assola o povo Yanomami, que escancarou os objetivos do governo anterior, em seu usual desprezo pela diferença encarnada nos povos originários que habitam o território nacional. A Fração Nacional Indígena do Partido Comunista Brasileiro (PCB), em nota lançada em fevereiro deste ano, analisa que “o genocídio perpetrado contra o povo Yanomami tem vários autores ou coautores. Há agentes privados, agentes públicos e agentes políticos envolvidos nessa ação de extermínio”, cujo crime está configurado na Convenção para Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio (ONU, 1948), na lei n. 2.889/56, e no Estatuto de Roma (1988), que instituiu o Tribunal Penal Internacional. Ainda de acordo com a Fração Nacional, “não basta investigar e aplicar as sanções cabíveis, é fundamental que se desmonte toda essa cadeia de ilicitudes e crimes”.
Desvendar essa cadeia criminosa irá expor – e não poderia ser diferente – contradições que imporão desafios estratégicos para o governo e para os movimentos sociais. Exemplo disso é o fato, divulgado em reportagem da Folha de São Paulo, da “presunção de boa-fé” no comércio de ouro, relacionada ao aumento da exploração ilegal garimpeira, ser um “jabuti” de autoria do deputado federal petista, Odair Cunha (PT-MG), em emenda à Medida Provisória cujo teor não versava sobre exploração mineral, mas sobre seguro agrícola.
A medida provisória foi transformada na lei nº 12.844 de 2013, sancionada pela presidenta Dilma Rousseff, e determinou que passaria a valer a simples palavra do vendedor do minério para atestar sua origem legal. Desde 2013, segundo pesquisa do Instituto Escolhas, mencionada na reportagem, homicídios decorrentes da extração ilegal de outro em terras indígenas e reservas ambientais teria aumentado em 20%. A então deputada Joênia Wapichana, atual presidenta da Funai, apresentou o projeto de lei nº 2159/2022 para acabar com a “boa-fé” instaurada e estabelecer medidas para rastreabilidade do ouro.
A Confederação dos Trabalhadores no Serviço Público Federal (Condsef), em nota do dia 30 de janeiro, afirma que a “crise humanitária que afeta a população Yanomami (…) é reflexo da necropolítica priorizada nos últimos quatro anos pelo governo Bolsonaro. Seus reflexos perversos estão diretamente ligados ao desmonte da Funai e ausência completa do Estado em políticas públicas para os povos indígenas”. Faz tempo que servidores da Funai denunciam a completa falta de condições de trabalho para dar conta da promoção e proteção dos direitos indígenas, especialmente em territórios dominados pelo crime organizado.
As feridas abertas pelo governo anterior, dessa forma, seguem pressionando os movimentos sociais e os gestores atuais para articular soluções possíveis diante da barbárie que foi estimulada através das políticas e condutas neofascistas da extrema-direita brasileira. Como bem avaliou a nota política “Os rumos da luta de classes sob o governo Lula-Alckmin”, do PCB, reiteramos: será necessária muita mobilização popular para que as indicações progressistas do governo Lula não percam força diante do assédio do capital, cujo enquadramento dos vândalos bolsonaristas serve de instrumento para retirar a combatividade expressa nas promessas de campanha e em indicações do governo eleito.
Excelente e oportuna matéria, tendo em vista a necessidade maior do conhecimento e compreensão acerca da realidade institucional do Estado, na sua relação com os povos indígenas, a qual suscita a adoção de ações voltadas para o aparelhamento e fortalecimento da Funai, objetivando a eficácia no cumprimento de sua missão em suprir de forma plena, numa relação construtiva sujeito-sujeito, os direitos e as necessidades dos povos indígenas, na sua diversidade.
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