Um beco de luta em Taguatinga

Por trás de toda idealização de cidade planejada e moderna, Brasília esconde uma história de segregação e violência estatal, mas também de muita resistência popular

por Mateus Cavalcante

*Antes de começar, registro meus agradecimentos à Jade Oliveira: foi por meio do seu lindo trabalho de conclusão de curso, de 2018, que pude conhecer a incrível história que compartilho agora.

Quem atravessa a Avenida Samdu Sul em Taguatinga, na altura da QSB 12/13, pode não se dar conta, mas está passando por um marco histórico do Distrito Federal. Por ali, em uma singela viela, (sobre)vive o Mercado Sul. Surgido antes mesmo da inauguração de Brasília, aquele que foi um dos primeiros centros comerciais do quadradinho permanece resistindo como centro de cultura e luta.

Uma Grande Feira Livre

No fim da década 1950, o Mercado era uma grande feira livre, distante cerca de 3 quilômetros da nova cidade, Taguatinga, que vinha sendo construída pelos mesmos trabalhadores migrantes que vieram para construção de Brasília. Em sua grande maioria, eram brasileiros vindos do Nordeste e Centro-Oeste do país, trazendo consigo sua cultura, seus sonhos e uma vontade obstinada de construir uma nova vida.

Era vendido de tudo por lá: frutas, artigos de cozinha, de decoração e utilidades domésticas, de jardinagem, vestuário, ferramentas, e tudo o mais que se precisasse para se instalar e viver no Planalto Central. Com o tempo, foram sendo construídas lojas estruturadas para abrigar o comércio local, que era predominantemente composto por camelôs.

Durante os anos de chumbo, a partir da década de 1970, começa a chegada de redes de supermercados à Taguatinga, levando o Mercado Sul a perder sua ingênua graça comercial. Aos poucos, foi sendo eclipsado por seu irmão mais novo, o Mercado Norte, local que hoje abriga a Feira dos Goianos e o Taguacenter. Conforme os comerciantes iam abandonando o Mercado Sul, suas lojas vazias passavam às mãos de novos habitantes, que não deixavam de chegar à região.

O nascimento da ocupação cultural

Os recém-chegados vizinhos passaram, então, a organizar clubes no local, como o “Duzentos” e a “Primavera”, que realizavam bailes aos fins de semana, funcionando como importantes centros de atividades culturais. Durante as décadas de 1970 e 1980 crescem, além dos clubes, os bailes Black, grupos de teatro e outros polos de expressão de cultura popular que se espalharam pelas cidades do DF.

A efervescência cultural da época encontraria abrigo no Beco, localizado no Mercado Sul, que se torna então reduto da cultura Black, do Rock, do Samba e outras culturas de contestação, subversivas. Artistas, jornalistas e poetas passam a ocupar ou alugar lojas para realizar seus ofícios e festas.

Assim, junto a sua nova vocação cultural, estabelece-se ali também um centro de irradiação de atuação política da juventude que lutava contra a sanguinária ditadura instaurada com o golpe de 64. Os jovens militantes firmavam-se como a primeira geração de herdeiros da luta dos trabalhadores das vilas Dimas e Matias, que, anos antes, organizando o poder popular, construíram inicialmente a cidade de Taguatinga em aberto conflito com o poder estatal, cuja atenção dada aos trabalhadores se resumia à violenta repressão. O Beco, além de abrigo da boemia, dava seguimento à história de resistência popular contra o estado ditatorial brasileiro.

Com o fim da ditadura, nos anos 1980, o desenvolvimento econômico excludente impõe nova derrota ao povo de Taguatinga: o Mercado Sul enfrenta novo processo de gentrificação, com expulsão, por meio do aumento generalizado dos preços, de seus antigos moradores. A desocupação de lojas, devido à alta dos aluguéis, inviabiliza a permanência de agentes culturais que vinham utilizando o Beco como centro de suas atividades.

O primeiro renascimento

Essa situação voltará a mudar apenas nos anos 1990, com a chegada da família do “Seu Dicó”, um luthier de violas. Ao lado de Chico Simões, mestre mamulengueiro, Dicó reiniciaria a fecunda ocupação artística do Mercado: por sinal, a “Aden Violões”, fundada por seu Dicó, funciona por lá até os dias de hoje. Pelo chão e pelas frestas do Mercado Sul, voltava a florescer o teatro popular e a cultura dos mamulengos – aos poucos, voltava a ser realizada a vocação do Mercado Sul como polo de atração de artistas.

Já no final da década de 90, Chico Simões levará para o Beco a sede do “Mamulengo Presepada”, que realizaria apresentações públicas e livres, oferecendo oficinas de teatro. Posteriormente, o espaço passa a se chamar “Teatro de Mamulengo Invenção Brasileira”. Pouco depois, junta-se à cena cultural o artesão Virgílio Mota: era o nascimento da “Tempo Eco Arte”. Ali, as pessoas podiam aprender a fazer artesanatos com o Sr. Virgílio, utilizando materiais reaproveitados e reciclados. Em pouco tempo, mais artistas se somariam ao “Tempo”, aumentando o escopo do ensino livre em artesanato promovido por seus organizadores.

O “Teatro de Mamulengo Invenção Brasileira” aquece cada vez mais o caldo cultural do Mercado Sul, reafirmando vínculos profundos entre a cultura e o local. Suas ações, inclusive, avançaram para muito além do território do Mercado Sul, fortalecendo a arte pelas periferias do Distrito Federal.

Com a eleição do primeiro governo Lula, a cultura passa a receber tratamento mais condizente com sua importância e, em 2005, o Teatro consegue se institucionalizar como um Ponto de Cultura, programa de incentivo e de descentralização cultural criado no governo Lula, com a gestão de Gilberto Gil no Ministério da Cultura.

A consolidação do potencial cultural

Uma vez reconhecido como Ponto de Cultura, os artistas e educadores populares passam a expandir sua atuação e sua rede de parcerias. As intervenções arte-educacionais promovidas pelo Teatro buscam se basear em um modelo de educação mais popular, menos formal, baseado no diálogo aberto, e privilegiando a passagem oral de conhecimento através de histórias e lendas populares. Diversos projetos culturais, de diferentes segmentos artísticos, vão se fortalecendo na região.

Juraci, por exemplo, percussionista brasiliense e especialista na música popular brasileira, desenvolve técnicas para produzir instrumentos a partir de material reciclado. Com projetos de musicalização em escolas públicas, valeu-se do espaço que alugou no Beco para oferecer oficinas de confecção de instrumentos a preços sociais. Em 2012, formou o grupo “Som de Papel”, banda musical de ritmos brasileiros. Os instrumentos utilizados eram todos confeccionados em papel, papelão e sacos de cimento.

Outro representante importante desse período foi o movimento artístico Tribo das Artes, que começa, em 2006, a atuar no Mercado. Entre suas atividades estavam saraus mensais e a confecção da revista “Tribo das Artes”, que chegou a ter cerca de 10 mil exemplares produzidos, sendo distribuída de forma gratuita em cafés, cinemas, teatros, faculdades, escolas e outros pontos culturais. Durante seus 8 anos de existência, os saraus pelo movimento contaram com exposição de xilogravuras, poesias de cordel, artesanatos e diversas outras expressões da cultura popular.

Dois anos após a chegada da Tribo, instala-se no Beco o “Estúdio Gunga”, um estúdio de comunicação e design. O Gunga, que atuou no Mercado até meados de 2021, funcionava como um grande polo em educação e produção de cultura livre digital. Foram promotores da utilização de software livre, que garante acesso a tecnologias importantes para o campo da produção cultural.

Outro grande marco do Mercado Sul foi a criação do Espaço Cultural Mercado Sul (ECMS), ocupação cultural promovida pelos coletivos “Grupo de Capoeira Semente do Jogo de Angola” (CSEJA) e “Eu Livre”. Além destes, que eram os principais organizadores, muitos outros artistas, artesãos, grupos e coletivos culturais passaram também a fazer parcerias e utilizar o ECMS. Projetos como a EcoFeira e o Arraial do Beco seriam frutos justamente dessas ações.

O próprio CSEJA, coordenado pelo arte-educador Formiguinha (Rubens Bezerra), reuniu diversas pessoas interessadas no estudo e prática da Capoeira. Realizaram atividades de valorização da cultura africana e negra não só no Beco, como também em periferias espalhadas pelo DF. Hoje, o coletivo segue promovendo também grupos de estudos, pesquisas, apresentações e rodas de samba.

Já o coletivo de saúde “Eu Livre” foi formado por professores, educadores e terapeutas. Promoveram a educação popular no campo da saúde, resgatando saberes tradicionais da cultura brasileira, como a produção de remédios fitoterápicos a partir de plantas, folhas e raízes. O coletivo também proporcionou atendimento de saúde à comunidade, através de terapia em grupo, em que pessoas relatavam seus problemas de saúde, às vezes apontando soluções em conjunto.

Um novo renascimento

Essas são algumas das ricas experiências colocadas em prática no Mercado Sul. No próximo capítulo de sua história, o Beco conheceria ainda possibilidades mais radicais e transformadoras de atuação. A aproximação de movimentos sociais como MST e MTST, com suas experiências em ocupações, ofereceu novos horizontes para atuação política no Beco. Era um momento de grande efervescência política no Brasil, época das jornadas de junho de 2013, decorrentes de manifestações contra o preço de passagens do sistema público de transporte.

Tudo isso se desenrolava ao mesmo tempo em que as condições financeiras dos coletivos que atuavam no ECMS no Beco deterioravam-se. Os aumentos nos preços dos aluguéis era, de novo, o principal problema. Os proprietários legais do Beco não pareciam muito contentes com a utilização de sua propriedade para a organização popular. Para eles, era mais interessante manter suas lojas desocupadas para que pudessem especular com tranquilidade.

Já os viventes do Beco tinham outros planos. Novamente a lógica do capital iria se defrontar com a organização do Poder Popular. Em 2015, em episódio que expressa o amadurecimento da organização política dos movimentos culturais que davam vida ao Mercado Sul, lojas do Beco foram ocupadas. Na madrugada do dia 7 de fevereiro de 2015, inicia-se o parto do coletivo cultural “Mercado Sul Vive”, formado pelos diversos coletivos que ali atuavam.

Mesmo enfrentando coerção policial, o coletivo conseguiu ocupar 8 lojas abandonadas no Mercado Sul. Uma série de mutirões seriam realizados para resolver os problemas que agora se apresentavam para o coletivo. Uma vez mais, a comunidade do Mercado Sul se organizava para impor o controle comunitário de um espaço criado e enriquecido pela própria comunidade.

A história continua

Impressiona a quantidade de vivências que coexistiram e coexistem no Beco, e que ali impuseram um poder humanizador, capaz de constituir uma comunidade vibrante e rica. A cultura de resistência presente no Mercado Sul reverbera o movimento histórico dos trabalhadores na sua luta pela superação do capitalismo, contra a ganância desumana e alienada que impõe a lógica do lucro como único critério para se viver.

O Beco continua vivo e o coletivo “Mercado Sul Vive” continua oferecendo cultura e comunidade como antídotos para o veneno do individualismo dos nossos tempos. Saber que tanta história aconteceu em um beco da QSB 12/13, em frente à avenida Samdu Sul, em nossa querida Taguatinga, torna irresistível o impulso de ali se aninhar e também fazer parte de sua construção. Respirar seu ar de força popular, seu gosto de vitória e a beleza de sua verdade.

Para acompanhar o Mercado Sul Vive

É possível acompanhar os eventos culturais, oficinas e feiras que acontecem no Beco pelo perfil oficial do coletivo Mercado Sul Vive no Instagram. No site do coletivo, também é possível obter mais informações sobre sua história de luta pela cultura popular.

No dia 11 de fevereiro estará sendo realizado no Mercado Sul a Eco Feira. Também será comemorado 8 anos de ocupação. Mais informações no perfil do coletivo.

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