A emergência climática impõe a busca por novas formas de relação entre ser humano e natureza. Há propostas que vão desde mudanças superficiais e cosméticas até as que envolvem pensar uma nova sociedade.
por Mateus Cavalcante
A emergência climática tem suscitado questionamentos acerca da forma com que os seres humanos se relacionam com a natureza. A crescente consciência de que a produção e o consumo de alimentos saudáveis estão vinculados a essa relação tem colocado em evidência novas formas de produção agrícola. Um desses modelos é o da Comunidade que Sustenta a Agricultura (CSA).
Uma CSA se caracteriza pela união entre agricultores e consumidores para financiar a produção de alimentos. De forma coletiva, agricultores e consumidores tomam decisões produtivas e organizam a sua distribuição. Essa modalidade incentiva a produção orgânica de alimentos e cria laços entre o campo e a cidade.
O modelo reflete elementos conceituais da antroposofia de Rudolf Steiner. Sua defesa de uma economia baseada no “apreço” ao invés de ”preço” se faz presente nos discursos institucionais das organizações que promovem a CSA atualmente.
A CSA também tem origens no sistema japonês teikei. Nesse movimento, surgido na década de 1970 a partir do surgimento de casos de envenenamento por mercúrio no país, buscava-se promover o consumo de alimentos orgânicos ou livres de produtos agroquímicos. Esses produtos eram obtidos por associações de consumo, como a Associação de Agricultura Orgânica do Japão, que buscava o contato direto com pequenos produtores locais.
A tecnologia CSA se espalhou por diversos países como EUA, Alemanha, Bélgica, Itália, Portugal, entre outros. Diversas modalidades de CSA podem ser observadas, geralmente classificadas a partir do tipo de vínculo formado entre consumidores e agricultores. Algumas CSA são organizadas pelos próprios agricultores e outros pelos consumidores – que também tomam parte no processo decisório e produtivo. Nos EUA, local onde a CSA é bem consolidada, cerca de 75% delas são lideradas e operadas pelos produtores.
Segundo os pesquisadores Antônio Hélio Junqueira e Sérgio Luiz Moretti, as principais vantagens das CSAs são “o fortalecimento dos vínculos sociais entre agentes urbanos e rurais e a recuperação de práticas alimentares tradicionais, sob a ótica da participação política e comunitária, em prol da sustentabilidade e da proteção do meio ambiente e dos recursos naturais”.
CSA no Brasil
Segundo os mesmos pesquisadores, no Brasil as CSAs são, quase em sua totalidade, iniciativas da sociedade civil, geralmente organizadas em ONGs sem fins lucrativos. São geridas primordialmente por agentes urbanos, os consumidores e coprodutores, em conjunto com os produtores rurais. As decisões são tomadas em assembleias periódicas, apresentando um alto grau de engajamento entre produtores e consumidores.
Nas assembleias são discutidos quais e quantos itens serão cultivados, além do balanço financeiro. As decisões são tomadas por votação, com os votos de produtores e coprodutores tendo o mesmo peso, e as contribuições tendem a ser por cotas mensais que podem variar a partir da quantidade de itens na cesta. O mais comum é que a CSA seja organizada em torno de uma família de produtores, embora organizações com três a cinco famílias também sejam frequentes.
Por se tratarem de experiências locais, as CSAs promovem uma certa economia de recursos. A distribuição é realizada com apoio dos coprodutores e com uso de embalagens reduzido. Junqueira e Moretti reforçam que “as iniciativas das CSAs são apontadas por 32% dos entrevistados como vantajosas para os consumidores por permitirem a fixação de valores e dias específicos para a obtenção dos gêneros alimentícios, o que favorece o planejamento no âmbito da economia doméstica familiar. De modo geral, os preços são considerados competitivos em relação ao mercado tradicional”.
Limites da CSA
Novas formas de relacionamento entre campo e cidade, a produção orgânica de alimentos, economia de recursos… são muitos os benefícios anunciados pelas CSAs. Tendo em vista seu propósito, porém, é notável a ausência de crítica ao capitalismo nos materiais de divulgação das CSAs – e mesmo seu tom apolítico. Afinal de contas, as relações produtivas vigentes estão na base, por exemplo, da catástrofe ambiental que se avizinha. As CSAs não poderiam se tornar frentes de ação anticapitalista?
Talvez tais ausências se devam à extração social das comunidades de consumidores. Os coprodutores tendem a pertencer às classes A e B. Os meios de produção, como adubo, irrigação e sementes ainda são os que o mercado oferece. As CSAs, porém, parecem contentar-se em atender a demandas pontuais por alimentos orgânicos.
Além disso, ao se articular em termos quase que exclusivamente locais, sem associações políticas mais amplas que envolvam as diversas comunidades numa macrorregião ou num país, por exemplo, as CSAs reduzem sua capacidade política transformadora. Sem horizonte político amplo, torna-se mais difícil a elevação da consciência dos próprios trabalhadores nelas organizados.
Comunidades do Bem Viver
A crise ambiental e social que enfrentamos só será superada com a superação do capitalismo, a qual só pode ser atingida por meio do poder popular que é desenvolvido a partir das organizações sociais. Não basta que alguns produtores produzam de forma ética ou que alguns consumidores tenham à disposição alimentos saudáveis e livre de venenos. É necessário, portanto, engajamento político capaz de garantir aos trabalhadores agrícolas o direito à terra, à moradia, ao produto de seu trabalho. É necessário construir o poder popular.
Na frente de atuação dos pequenos produtores agrícolas, há diversos caminhos de atuação anticapitalista. Desnecessário relembrar a gigantesca contribuição do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), da Frente Nacional de Luta Campo e Cidade (FNL) e congêneres na luta pela reforma agrária e no fomento à agricultura familiar sustentável como base da segurança alimentar de nossas cidades. Nos últimos anos, talvez em camadas sociais próximas àquelas envolvidas nas CSAs, surgiram as comunidades do Bem Viver, buscando construir uma nova sociedade a partir de uma perspectiva agroecológica. Os sistemas agroflorestais são aqueles que emulam, na terra cultivada, os sistemas naturais: as associações entre espécies, o arranjo espacial, os ciclos sazonais etc.. O resultado é a conciliação entre preservação natural e produção de alimentos.
Essas comunidades promovem, assim, articulações entre agricultores e consumidores que buscam, através da agroecologia e da luta política, a soberania alimentar no campo, na floresta e na cidade. Além de uma fonte de renda estável aos agricultores que lutam pela reforma agrária, criam espaços de reflexão política comunitários. Através da promoção de debates e reflexões sobre problemas que o capitalismo engendra, contribuem na elevação da consciência política para além das dificuldades individuais, fortalecendo uma lógica de solidariedade ampliada e superando uma certa miopia política das CSAs.
O diálogo com agricultoras que participam de uma comunidade do bem viver evidencia a vocação revolucionária do movimento: “Nós já somos uma história, uma história do bem viver, uma história transformadora com a nossa luta de transformação, de vivência, porque nós juntos somos uma transformação revolucionária e acreditamos cada vez mais no nosso potencial”, afirmou Francisca Chagas, agricultora em uma comunidade do bem viver no Distrito Federal.
O adubo que utiliza, por exemplo, é feito dentro da sua própria chácara, enquanto as CSAs em geral lançam mão de fertilizantes adquiridos no mercado. Isso não apenas reduz o impacto ambiental do processo produtivo, como também garante alguma autonomia perante os ânimos do mercado. Dessa forma, é possível garantir alimentos a preços acessíveis em tempos turbulentos da economia. Um dos agricultores da Bem Viver, Samuel Moreira explica a diferença entre ela e as CSAs. “Nas comunidades agroecológicas do Bem Viver a gente já tem um viés diferente. O princípio é a agroecologia”. Segundo o produtor, a comunidade evita, por exemplo, usar insumos externos.
Por envolver uma leitura dos sistemas naturais da região, outra característica importante é a forma participativa e em grande medida não alienada pela qual os coagricultores atuam na produção. Isso não apenas pela autonomia que a posse da terra propicia como também pela maneira necessariamente criativa com que os trabalhadores devem se envolver com a terra cultivada.
É possível uma nova relação entre campo e cidade
O contraste entre as CSAs e a Comunidade Agroecológica Bem Viver evidencia as limitações das primeiras. Apesar das CSAs contribuírem para uma produção mais harmônica com a natureza, isso ocorre somente até onde convém a um determinado mercado. Seu horizonte político restrito acaba por, de certo modo, fetichizar a produção e os produtos orgânicos, como se fosse mais um modelo de negócio capitalista.
Não basta que alguns possam consumir alimentos saudáveis, é preciso lutar para que todos possam desfrutar de uma alimentação sustentável e livre de venenos. É preciso recordar, sempre, o princípio enunciado por Chico Mendes: ecologia sem luta de classes é jardinagem. Ao criarem espaços para a luta e emancipação política, as comunidades do Bem Viver contribuem para uma real refundação da relação entre agricultores, consumidores urbanos e meio ambiente. Buscando a integração da floresta, do campo e da cidade, elas são espaços de aprendizado, trocas e construção de toda uma Sociedade do Bem Viver.