No Brasil, o peso médio dos gastos em medicamentos no gasto total com saúde foi 20,5% no período de 2015-2019, com elevado pagamento direto do bolso da população. Em 2019, as famílias arcaram com 91,9% da despesa de consumo final de medicamentos no país. Em 2019, as despesas com pagamento direto das famílias com medicamentos…
por Angelo Barreto

Fonte: elaboração própria, baseado em dados das Contas SHA.
No mês de setembro de 2022 o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (DIEESE) publicou a Pesquisa Nacional da Cesta Básica de Alimentos onde sinalizava que o custo da cesta básica havia se elevado em todas as cidades brasileiras pesquisadas, na comparação dos valores de setembro de 2022 e setembro de 2021.
Constitucionalmente se determina que o salário mínimo deve ser suficiente para suprir as despesas de trabalhadores/as e das suas famílias com alimentação, moradia, saúde, educação, vestuário, higiene, transporte, lazer e previdência, contudo, o salário mínimo vigente atualmente no Brasil não acompanha o aumento do custo de vida. Logo, a realidade é uma grande parcela da população vivendo na pobreza, sem ter com o que se alimentar, desempregada etc., enquanto o grande capital aumenta sua taxa de lucros e concentra a riqueza que é produzida pela classe trabalhadora.
O Dieese estima ainda que o salário mínimo necessário para manutenção de uma família de quatro pessoas deveria ter sido de R$ 6.306,97 em setembro de 2022. Um trabalhador que ganha R$ 1.212,00 ao mês, compromete, em média 58,10%, do rendimento para adquirir os produtos alimentícios básicos. Para piorar, ele precisará ainda arcar sozinho com as suas despesas de saúde (majoritariamente com o consumo de medicamentos).
As despesas com medicamentos no Brasil
Ter acesso a medicamentos é um dos elementos para o atingimento de uma saúde física e mental, ou seja, é um componente do direito à saúde, ainda que não seja o único, afinal a saúde é determinada socialmente. Para essa acessibilidade é relevante que algumas dimensões sejam levadas em consideração: geográfica – pois o medicamentos precisam estar disponíveis em todo o território; econômica – sejam disponibilizados de forma gratuita (ou seja, sem desembolso dos usuários) ou a preços que possam ser custeados pela sociedade; ética – sejam disponibilizados para toda a população e nesse processo não exista desigualdade de classe, raça e/ou gênero; e informacional – com disponibilização de informação confiável às pessoas que se beneficiam dos medicamentos, bem como aos trabalhadores da saúde que são a ponte no processo de dispensação, orientação e uso racional dos medicamentos.
Segundo o Anuário Estatístico do Mercado Farmacêutico publicado pela Anvisa, o faturamento da indústria farmacêutica no Brasil alcançou a marca de R$ 85,9 bilhões com a venda de cerca de 5,3 bilhões de embalagens de medicamentos no ano de 2019. O setor industrial farmacêutico cresceu, em 2019, 12,6% em faturamento, evoluindo de R$ 76,3 bilhões (2018) para R$ 85,9 bilhões. Esses números demonstram a enorme força desse mercado.
A gestão de tecnologias é um desafio recorrente em muitos sistemas nacionais de saúde. Por um lado, o desenvolvimento científico e tecnológico nas últimas décadas contribuiu para ampliar o acesso de tratamentos para várias doenças, e consequentemente para o aumento da expectativa de vida da população. Por outro lado, esse acesso ainda é deficitário, de modo que muitas pessoas ainda sofrem acometidas por doenças que recebem pouca atenção por parte do Estado para o desenvolvimento de alternativas terapêuticas mais seguras, eficazes e efetivas.
Tem crescido o interesse de gestores públicos e da sociedade a respeito dos gastos com medicamentos no Brasil, em especial a partir da década de 1990, com a aprovação da Política Nacional de Medicamentos (PNM). Em 2004, com a publicação da Política Nacional de Assistência Farmacêutica (PNAF), intensificaram-se a implementação de programas nesta área, destinados a ampliar o acesso da população a medicamentos por meio do Sistema Único de Saúde (SUS), aumentando também os gastos do governo com tais produtos.
O gasto com medicamentos é uma questão de importância nacional e internacional em virtude da tendência de aumento das despesas em medicamentos acima do aumento das despesas com saúde. O que se tem observado nos últimos anos em diversos países é que o consumo de medicamentos continua subindo e induzindo o aumento das despesas. Além disso, os elevados preços dos novos medicamentos geram grandes desafios aos sistemas de saúde em todo o mundo. Para se ter ideia, apenas em 2019, o faturamento de medicamentos novos, no Brasil, apresentou maior representatividade no mercado, somando mais de R$ 30,5 bilhões.
As despesas em medicamentos das famílias
Vale ressaltar que o comprometimento dos recursos financeiros das famílias com medicamentos não é algo recente. Pesquisadores/as nas décadas passadas já haviam sinalizado para situação. Em estudo de 2006, por exemplo, um grupo de pesquisadores do Ipea analisou os dados da Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) e da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), da segunda metade da década de 1990, demonstrando que os gastos com saúde efetuados pelas famílias eram o quarto maior grupo das despesas de consumo familiar, sendo que os medicamentos respondiam por 37% dessas despesas.
Em 2013, verificou-se que os gastos com medicamentos das famílias brasileiras apresentaram uma variação percentual positiva de 10% durante os períodos de referência das POF estudadas (2002-2003 e 2008-2009), demonstrando ainda que a composição destes gastos segundo categorias de medicamentos difere conforme a renda das famílias. No ano seguinte, descobriu-se que gastos em saúde aumentaram a proporção de domicílios abaixo da linha de pobreza no Brasil em 2,6% para a POF 2002-2003 e em 2,3% para a 2008-2009.
Marx, o valor da força de trabalho e a saúde
Marx nos ajuda a compreender que o valor de uso da força de trabalho é sua capacidade de produzir valor e mais-valia, enquanto o trabalho é o processo de consumir o valor de uso da força de trabalho. A magnitude do valor da força de trabalho é determinada pela quantidade de trabalho socialmente necessário para a produção e reprodução desse artigo específico. A princípio pode-se pensar que a reprodução da força de trabalho só é possível quando, depois do final da jornada de trabalho, o trabalhador está em condições de repor sua saúde e energia para voltar a trabalhar na jornada seguinte.
No primeiro volume d’O Capital, Marx destaca que “dada a existência do indivíduo, a produção da força de trabalho consiste em sua própria reprodução ou manutenção” (p. 275). Logo, para sua reprodução [ou manutenção], os/as trabalhadores/as necessitam de certa quantidade de meios de subsistência (ou mercadorias) que satisfaçam as suas necessidades naturais – alimentação, vestimenta, transporte, saúde, lazer, educação, moradia etc. – e sejam suficientes para mantê-los/as em condições normais de vida. O tempo de trabalho necessário à produção da força de trabalho corresponde ao tempo de trabalho necessário à produção de tais meios de subsistência. Dito de outra maneira, o conjunto de mercadorias necessárias à subsistência de trabalhadores/as possui um valor, uma magnitude de valor. E esse valor é parte do valor da força de trabalho.
A extensão das necessidades imediatas, bem como o modo de sua satisfação, é ela própria um produto histórico. “Diferentemente das outras mercadorias, a determinação do valor da força de trabalho contém um elemento histórico e moral. No entanto, a quantidade média dos meios de subsistência necessários ao trabalhador num determinado país e num determinado período é algo dado”, reforça Marx (p. 276).
Além disso, o proprietário da força de trabalho é mortal e em algum momento vai precisar ser substituído – por haver terminado sua vida útil ou simplesmente por ter morrido. O sistema do capital não está muito interessado na “finitude” do indivíduo detentor da força de trabalho, se preocupando apenas com a contínua transformação de dinheiro em capital, que por sua vez exige uma contínua perpetuação de trabalhadores/as no mercado de trabalho. Os trabalhadores, seres finitos que são, só conseguiram se perpetuar, e assim atender as exigências de produção e reprodução do capital por meio da “procriação”: o proletariado precisa ter sua prole. Isso significa que os/as trabalhadores/as precisam ter filhos/as, que também precisam das condições necessárias para sobreviver e se desenvolver. Tudo isso implica um conjunto adicional de mercadorias que possuem um valor. A magnitude desse valor se incorpora à força de trabalho.
Por isso, identificam-se duas dimensões no valor da força de trabalho na análise de Marx, a saber, o valor diário e o valor total. O valor total considera o tempo total de vida útil do trabalhador ou o total de dias que o possuidor da força de trabalho vende sua mercadoria no mercado, em boas condições, além dos anos de vida em que já não participará da produção (anos de aposentadoria).
Se o salário recebido pelo/a trabalhador/a é insuficiente ou se este indivíduo está envolvido num processo de trabalho que gera muito desgaste (seja pelo prolongamento da jornada de trabalho, seja pela intensificação do trabalho), de modo a encurtar o seu tempo de vida útil e de vida total, isso representa situações nas quais o capital está se apropriando hoje dos anos futuros de trabalho e de vida. São, por isso, processos de exploração redobrada.
Nesse contexto, “saúde” é uma mercadoria (meio de subsistência) que contribui para a reprodução da força de trabalho, ou seja, o valor (ou magnitude do valor) da mercadoria saúde se incorpora ao valor da força de trabalho.
Se o trabalhador é privado de “saúde”, ele acaba sendo privado de uma condição fundamental para sua reprodução e isso diminui a sua vida útil, consequentemente diminuindo o valor total da força de trabalho, já que este é mensurado com base no tempo total de vida útil do trabalhador ou no total de dias em que o possuidor da força de trabalho vende sua mercadoria no mercado, em boas condições.
Nesse cenário de crise sanitária, tem-se presenciado um contingente considerável de trabalhadores/as adoecidos física e psiquicamente. São trabalhadores que em alguma medida apresentam dificuldade na reposição de sua energia e saúde para voltar a trabalhar na jornada seguinte. Estes trabalhadores não têm os meios de subsistência suficientes para reproduzir a sua força de trabalho, ficando submetidos ao processo de superexploração da força de trabalho.
Se somarmos a esse cenário a precarização histórica do Sistema Único de Saúde (SUS), que através da sua assistência à saúde e serviços (mas não somente isso) confere o aporte de saúde necessário para que a classe trabalhadora reproduza a sua força de trabalho e continue trabalhando com melhores condições de vida, é possível conceber o quanto essa precariedade da saúde pública brasileira contribui para o rebaixamento do valor da força de trabalho, logo para superexploração da força de trabalho, para extração de excedente do trabalho, a mais-valia.