O Ipê acompanha a terceira edição do Kinoprestes, sessão que exibiu O homem que virou suco, um clássico anticapitalista sobre a opressão e a alienação.
por Carlão
Foi exibido, no dia 19/07/2022, na sede brasiliense do Partido Comunista Brasileiro (PCB), o filme O homem que virou suco (1980), de João Batista de Andrade. Tratou-se da terceira edição do evento chamado Kinoprestes, que ocorre às terceiras terças-feiras de todo mês, e já contou com a exibição de Eles vivem (John Carpenter, 1988) e Trem Baiano (Robson Calvalcante e Claudemir Silva, 2016).
Em todas as ocasiões, as sessões foram seguidas por debate acerca do sentido dos filmes, a partir de sua trama, de seus elementos formais e do contexto histórico de sua produção e recepção. A ótima iniciativa do partido permite a análise de filmes que, de forma direta ou não, abordam temas ligados à temática socialista e comunista. Registro aqui breves impressões acerca da obra discutida.
Um clássico anticapitalista
A fita do diretor João Batista de Andrade, lançada em 1980, teve pouca recepção à época, mas, com o passar do tempo, adquiriu reverência, status de cult e permanece como um retrato insuspeito – em tons quase fabulares e recheada de símbolos – da exploração sofrida pelos migrantes nordestinos ao chegarem na cidade grande, mais especificamente, em São Paulo. Em filme de qualidade técnica inconteste, Batista consegue inserir toda armaria crítica ao capitalismo, descrita nas suas lentes voltadas aos focos de contradições deste sistema.
Se n’O Capital, Marx afirma que do trabalho humano não resta mais que “uma mesma objetividade fantasmagórica, uma simples geleia de trabalho humano indiferenciado”, Batista afirmará que do próprio homem oprimido o capitalismo fará suco. Esta ênfase anticapitalista é montada com planos envoltos em alegorias de humor e com o linguajar peculiar da década. Vale lembrar que o Brasil atravessava o período da ditadura militar, o que reforça nossa intuição primeira acerca da ousadia formal e material adotada pelo diretor.
Sinopse
O Homem que virou suco narra a história do retirante Deraldo José da Silva, poeta popular paraibano que busca emprego em São Paulo e acaba confundido com José Severino da Silva, imigrante cearense que matou seu patrão, um executivo americano de uma construtora. Artista da palavra em meio a analfabetos, Deraldo se revoltará contra os trabalhos pesados e alienantes que lhe são oferecidos, sendo logo taxado de vagabundo. Representando a insuficiência da mera revolta individual, a sina do paraibano pelos retratos urbanos da periferia de São Paulo revela um mundo em que, segundo seus versos, “enquanto a fortuna dorme, a desgraça não descansa”.
Opressão e muito preconceito
Nesse aspecto, não há novidades do que já conhecemos de há muito, isto é, as dificuldades sofridas pelos migrantes, retratadas nessa chegada à São Paulo do protagonista Deraldo, vivido brilhantemente pelo ator José Dumont. Uma análise do filme a partir do século XXI, período em que aspectos físicos e opressivos da metrópole conheceram ainda maior deterioração, em função do próprio crescimento da cidade, obriga-nos a recordar que a carga exibida de preconceitos e opressões continua inalterada ou foi mesmo agravada.
O realizador, também autor do roteiro, foi feliz ao mesclar a comicidade e a revolta de alguns personagens, em uma narrativa crescente à mensagem principal, ou seja: exploração e alienação injetadas nos 3 atos da fita. Deraldo, cabra valente, sente os ataques, mas resiste com sua arte. O cordel atenua. Percebe-se que Deraldo tem lá seu estudo. Sua satisfação resplandece quando lê cartas para operários analfabetos em uma obra em que está empregado. Mas é temporário esse sentimento e seu temperamento de fibra leva-o a perder mais um emprego. Ao mesmo tempo, constantemente acossado por um crime que não cometeu, procura encontrar seu sósia, o assassino do manager americano, em trama que reforça ainda outra opressão: a persecução da polícia e do sistema penal burgueses.
Brilhante condução
Perseguido pela polícia e concomitantemente à busca do matador do norte-americano, Deraldo não leva desaforo, briga com todos os patrões e vaga de emprego em emprego. Nisso, a narrativa, que caminhava para um plot à semelhança de O Homem Errado (Alfred Hitchcok, 1956), é convertida, no bom sentido, aos elementos fulcrais da proposição: mostrar a exploração dos trabalhadores com humor e verve.
Sequências emblemáticas
Não vou descrever o desfecho, pois não tenho o costume de resenhar com spoilers. Mas vale a pena tecer alguns momentos bem representativos do cerne do que é executado pelo diretor: duas passagens, em especial, são representativas da alienação e exploração vivenciados por uma população espoliada de sua pegada crítica. Não é culpa dos trabalhadores. O bombardeio da ilusória narrativa da classe dominante e a necessidade de sobreviver poluem o necessário descortinar que se impõe a todos que trabalham. Ficamos reféns do Capital.
Pois bem, temos, em uma dessas cenas, um treinamento para construção de uma obra do metrô paulista, tocada por uma multinacional. Deraldo escuta as instruções de um executivo ao expor as necessidades de se adotar um comportamento de “carneirinhos felizes” frente aos processos da empresa. O vídeo seria exposto durante três dias, em uma autêntica lavagem cerebral para transformar seus empregados em gado. É incrível como, logo em seguida, em uma metáfora poderosa, Deraldo, encurralado em uma baia, escuta os mugidos dos bovinos e preconiza seu fim como um autômato aprisionado e à mercê dos plutocratas. O paraibano resiste e não se rende às armadilhas impostas pelo Capital. Belíssima assinatura visual de João Batista de Andrade. Puro cinema.
A outra passagem é uma sequência interessante, atual e deliciosa. Mostra uma festa na casa da alta burguesia de São Paulo, onde Deraldo trabalha. Jovens, filhos da plutocracia, divertem-se com bebidas e música alta. O humor e as tiradas são deleites puros, culminando com a filha dos donos dançando com o protagonista – para horror da madame, representante da ordem dominante. As futilidades crescem de maneira exponencial. Luta de classes com vestígios e inspirações de A Regra do Jogo (Jean Renoir, 1939). Primor!
Sensacional 3º Ato
É o momento em que o roteiro de Batista alcança seu ponto máximo. Lembremos do sósia de Deraldo e sua provação. Agora, então, a fita perfaz os motivos que o levaram a assassinar o executivo. Aqui, todo segmento carrega simbologias e metáforas. A passagem para o estado líquido (o suco) é contada pelo diretor em um compasso que segura o público – e o choca. Ao final, no entanto, há esperança. A Arte salvadora está a demonstrar o quanto ela é poderosa. Não apenas para atenuar sofrimento, mas para encapsular um sentimento de realidade e prontificar a população para a luta necessária para destruir o sistema aniquilador e injusto em que vivemos. Arte tão atacada atualmente pelos famigerados governantes. Não vou revelar, nem analisar o restante. Como disse, não gosto de spoilers.
Paro por aqui e lembro que a fita é relativamente fácil de encontrar. Acrescento que, independente da estética dos anos 80, que às vezes parece datada com sua paleta de cores lavadas, a benéfica ausência da famigerada câmera rápida; seu surpreendente roteiro; a qualidade da trupe inteira com José Dumont à frente; o ritmo e a rica extradiegese, com músicas de raízes autênticas nordestinas, levaram o trabalho de João ao cume. Não por acaso, este foi incluído em lista dos 100 melhores filmes brasileiros de todos os tempos. O prêmio especial conquistado no festival de Moscou de 1981 deu a partida merecedora e necessária.
[…] Explora, derrete…, mas fica a arte e parte à luta: impressões do filme “O homem que virou suco… […]
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