O Ipê visita a exposição “Ilê Funfun”, no Museu Nacional, e desvela na obra de Rubem Valentim um horizonte revolucionário ancorado na força de nossa matriz africana
por Raul Floriano
Oxalá é o grande orixá da criação: como canta o ponto, Oxalá criou a terra, Oxalá criou o mar, Oxalá criou o mundo onde reinam os orixás. Menos conhecido é que “o senhor do pano branco” teve também um filho, prepotente e abusado, chamado Dinheiro. Para provar-se mais poderoso que o pai, Dinheiro quis fazer da Morte sua prisioneira. Mas ao ver o filho com tão horrenda presa, Oxalá – que é criação e é ausência, que é também tudo que ainda não veio – expulsa Dinheiro de sua casa, criando assim, talvez, sabe-se lá que novo mundo.
É a esse orixá que o artista Rubem Valentim dedica as obras reunidas em “Templo de Oxalá”, conjunto de 20 esculturas e 10 relevos, exibido na exposição “Ilê Funfun: uma homenagem ao centenário de Rubem Valentim”, aberta até 7 de agosto no Museu Nacional da República, em Brasília. O artista baiano, que completaria 100 anos em novembro, mudou-se para Brasília em 1967, lecionou na Universidade de Brasília (UnB) até o acirramento do regime militar com o Ato Institucional nº 5 (AI-5), e acabou adotando a capital federal como sua terra.
Artista plástico consagrado, Rubem Valentim merece a justa homenagem de Brasília. Conhecido por sua pesquisa relacionada às religiões de matrizes africanas, é normalmente celebrado por propor o diálogo entre o abstracionismo geométrico e a cultura negra do país. Injusta, porém, é a maneira como a excessiva atenção dada à forma na interpretação de sua obra acaba por limar seu poderoso conteúdo político. A exposição “Ilê Funfun” dá elementos para superação de tal estreiteza interpretativa, de origem ideológica.

Rubem Valentim: trajetória e obra
A constatação do conteúdo político cristalizado na obra de Valentim pode ser realizada, primeiramente, pela apreensão de sua própria trajetória, amplamente tematizada na exposição do Museu Nacional. Além do “Templo de Oxalá”, a exibição brasiliense, de curadoria de Daniel Rangel, conta com outras duas seções: o “Ateliê”, que traz ferramentas e objetos utilizados pelo próprio artista; e “Cronologia”, que exibe recortes de jornais, pesquisas, cartas e outros arquivos pessoais sob a guarida de duas paredes recobertas com uma extensa linha do tempo sobre a vida de Rubem Valentim.
Por meio delas é que descobrimos que ele nasceu na Sé, em Salvador, em novembro de 1922. Pintor autodidata, abandonou a profissão de dentista para dedicar-se à pintura, seguindo o conselho de sua Mãe Senhora do terreiro Ilê Axé Afonjá, de onde ele era Obá de Xangô – um título do corpo sacerdotal exclusivo desta tradicionalíssima Casa de nação Kêtu.
Ao longo da década de 1950, já imbuído da poética visual dos orixás, realiza sua primeira exposição individual – em 1954, na Galeria Oxumaré, que também promoveu individuais de outros artistas dedicados à temática afro-brasileira, como Carybé e Mario Cravo Júnior – e recebe seu primeiro prêmio, em 1955, no VII Salão Bahiano de Belas Artes.
Episódio fundamental de sua constante pesquisa da “iconologia afro-ameríndia-nordestina” – como ele mesmo a denomina – ocorre em 1957: em 13 de dezembro desse ano, a bordo de um cargueiro da Companhia de Navegação Baiana, Rubem Valentim parte para o Rio de Janeiro. Na capital, ele entraria em contato com a produção concretista carioca e, mais importante, conheceria a imagística dos Pontos Riscados da umbanda, ausentes no candomblé.
Os Pontos são extensos códigos registrados e sediados no plano espiritual, que Entidades de Luz, quando incorporadas, utilizam-se para se apresentar e demonstrar sua graduação hierárquica. Normalmente são traçados em tábuas ou no próprio chão com uma espécie de giz, a Pemba, com as quais são esboçados símbolos identificadores das entidades, como sóis, flechas, arcos, machados, triângulos, raios, entre tantos outros elementos visuais incorporados na obra do artista baiano.
Imerso na força da cultura africana, Rubem Valentim dirá depois ter encontrado na “geometria e na luz sua arma poética para lutar contra a violência, em um exercício de liberdade contra as forças repressivas”, fazendo do “fazer artístico sua salvação”. Tendo começado a explorar composições com ex-votos – objetos e artefatos escultóricos deixados em salas de milagres de igrejas católicas – Valentim passará a ver nos instrumentos simbólicos e ferramentas do candomblé a poética visual brasileira capaz de “humanizar as comunidades”, o que, por meio da integração arte-ecologia-urbano-arquitetural transcrita para o espaço, passará a ser seu objetivo declarado. Objetivo bem distante, resta evidente, do formalismo ascético de boa parte da arte contemporânea.
É por isso que, ao entrar na exposição “Ilê Funfun”, não nos deparamos simplesmente com esculturas brancas sem verso ou anverso, vazadas umas, robustamente sólidas outras, em uma infinita e talvez confusa simbologia de círculos, minguantes, crescentes, cunhas, retângulos e algumas setas que às vezes não se concretizam no triângulo da direção.
Essas formas, de sabor ancestral, presentes também nos relevos e pinturas, recuperam seu sentido e recobram força ao compreendermos que remetem, na verdade, ao oxê [machado] de Xangô, aos ferros de Ossaim, ao abebê de Oxum, ao ibirí de Nanã, ao pachorô de Oxalá, à composição dos pejis [altares] e a tantos outros elementos da iconologia do candomblé. Com ela, Valentim tentará criar uma linguagem universal e abstrata, mas, ao mesmo tempo, prenhe de luta e resistência.

A esterilização da obra de Rubem Valentim
Não é essa, contudo, a interpretação majoritária de sua obra. Para críticos como o italiano Giulio Carlo Argan, Mário Pedrosa, Roberto Pontual e Paulo Herkenhoff, fundamental na obra de Rubem Valentim seria perceber como ele depura e purifica o conteúdo animista e mágico da iconografia dos orixás para, assim, poder adentrar na linguagem universal da abstração. Fugiria, assim, do animismo mágico para criar uma mitologia propriamente artística.
Mário Pedrosa, introdutor do trotskismo no Brasil e competente crítico de arte, chega a dizer que Valentim “desenraizaria o terreiro” para converter “signos litúrgicos” em “signos abstratos”. No mesmo sentido, Roberto Pontual entende que a manutenção da referência aos elementos das religiões de matrizes africanas faria “faltar uma etapa” para que sua obra atinja o patamar da abstração.
Essa linha argumentativa é melhor resumida pelo grande crítico de arte G.C. Argan. Ele defende, sinteticamente, que a configuração das imagens do artista seria mais heráldico-emblemática que simbólico-mágica: isto é, estaríamos diante de símbolos que representam ideias abstratas, as quais devem ser racionalmente lidas e interpretadas, e não de objetos ritualísticos pré-artísticos que pudessem ter a pretensão de agir, magicamente, sobre a realidade.
A exploração da relação originária entre arte e magia está longe de ser uma novidade, mas pode nos ser útil para a compreensão da insuficiência dessas análises. Para o grande esteta marxista da Escola de Frankfurt, Theodor W. Adorno, a arte seria justamente o movimento dialético entre a magia – portadora de uma expressividade que recusa qualquer reconciliação com o sentido racional – e a racionalidade coisificante, que domina a realidade.
A arte teria, assim, a forma da objetividade sem ser mero objeto, pois carregaria em si esse estrato pré-artístico mágico, subtraindo-se da racionalidade sem a eliminar de todo. Como, porém, no capitalismo tardio a racionalidade parece ter reificado já toda a experiência humana, a arte restaria também mutilada, refugiando-se seja na negação da expressão (a estética do absurdo; a mística irracional do dadaísmo), seja na completa formalização da expressão (a arte abstrata, o concretismo, a arte conceitual).
Assim, a arte existiria apenas como cifra da reificação da interioridade humana e testemunho da exaustão da experiência consciente: única possibilidade artística em um mundo com o princípio da realidade já tão sobrevalorizado, o obscurecimento do mundo tornaria racional a irracionalidade da arte.
Ao interpretar a obra de Rubem Valentim no sentido de que ela teria alcançado (e almejado) a formalização e abstração dos elementos afro-brasileiros, depurando-os de qualquer conteúdo ritualístico ou animista (ou político!), os críticos relegam Valentim a esse tipo supérfluo de artista pós-moderno: artista cuja única possibilidade de expressão real é indicar a impossibilidade da expressão. Não parece ser esse, contudo, o verdadeiro legado de Rubem Valentim.
Arte para um mundo novo
A abordagem acima descrita não passa de uma tentativa de esterilização da força da obra do obá-pintor de Casa de Mãe Senhora. Não é possível, a partir de sua obra e trajetória, reduzir sua linguagem ao vazio formalista que Adorno contempla desde seu “Grande Hotel Abismo”.
Afinal, falamos de um homem que realizou “uma das aventuras mais fiéis” ao tema afro-brasileiro na arte brasileira. Falamos de um artista que, em 1966, participa da delegação brasileira ao I Festival Mundial de Artes Negras, em Dacar, Senegal. Delegação que foi, inclusive, chefiada por ninguém menos que Edison Carneiro, o “intelectual feiticeiro” do Partido Comunista Brasileiro (PCB).
Acompanhamos aqui a nobre exceção crítica de Lisette Lagnado para afirmar que a análise do legado desse artista de origem negra, pobre e autodidata não pode ser parametrizada pelo simples modelo da arte europeia. Assim como é preciso conceder, juntamente com a autora, que falar de “limpeza”, “purificação” e “expiação” no trajeto construído para atingir a forma abstrata não deixa de ter uma conotação incomodamente moralizadora quando aplicado a uma pessoa adepta do candomblé.
Cremos, ao contrário, que ao firmar seu abstracionismo em um conteúdo mágico, animista, telúrico e com vistas a agir no real, Rubem Valentim aponta um caminho para arte que ultrapassa o abismo formalista previsto por Adorno: assim como o capitalismo tardio reflete e explica a exaustão de sentido da arte moderna, o estabelecimento de uma alternativa ao vazio do ser atomizado capitalista permite a compreensão da arte de Valentim. Nas palavras do autor, ele propõe uma arte que visa a “humanizar comunidades” e que, como atividade desalienante que volta a dar sentido ao trabalho, encontra em seu próprio fazer artístico sua salvação.
O artista baiano reconhece a obscuridade do sentido, deglute-a e cria uma mitologia esperançosa ancorada na negritude afro-brasileira. Não é renunciando à magia que sua arte ingressa no campo do universalismo, como querem seus críticos: a passagem do mágico ao mítico é ainda confiar no que não é acessível à racionalidade coisificante. Mas não por algum tipo de obscuridade metafísica ou recurso a um inconsciente imperscrutável: é por apostar em uma resposta que só pode ser alcançada em uma sociedade outra; por apostar em uma linguagem cujos falantes ainda não nasceram, mas cujos gérmens já se podem ver.
O sentido da arte de Valentim tem de ser encontrado, portanto, não na superação do mágico em direção ao formalismo, mas, antes, na manutenção do conteúdo mágico como índice de um mundo que poderá vir. É ele mesmo quem o diz:
O artista projeta mesmo abandonando também a fatalidade da tela, organiza seus signos no espaço, talhados como emblemas, brasões, broquéis, estandartes, barandões de uma insólita procissão talvez de um misticismo religioso sem igreja, sem dogmas, a não ser a eterna crença nas raças e nos povos oprimidos no advento do milênio, na fraternidade das raças, na ascensão do homem.
Talvez Rubem Valentim não concordasse com o nome que damos ao mundo dos povos oprimidos no advento do milênio e da fraternidade das raças: para nós, o mundo comunista. Talvez tampouco pensasse em Oxalá como o criador também desse mundo específico, gerado a partir da expulsão do dinheiro e da morte, sua prisioneira. Mas ele tinha absoluta consciência de que sua chegada, no Brasil, dependia do resgate da força cultural de nossas matrizes africanas. Nisso concordamos em absoluto: a revolução brasileira há de ocorrer – e ela há de ser negra.