No primeiro artigo da série “A Terceirização no Serviço Público”, a Revista O Ipê apresenta o fenômeno da terceirização no serviço público, indicando sua extensão e seus reais beneficiários.
por Luiz Felipe “Lipe”
A Revista O Ipê inicia a presente série de quatro artigos sobre a terceirização no serviço público, com a qual se pretende jogar luz sobre suas causas, seus efeitos, seu sentido econômico e sobre a arquitetura jurídica que a subjaz.
A trabalhadora ou trabalhador terceirizado é a pessoa que presta serviços para alguém, mas, por motivos sinistros, é funcionária de uma terceira pessoa que ainda não tinha entrado na história – e nem devia. A ciranda está pronta: o terceirizado sem direitos, a empresa tomadora de serviços sem responsabilidades e a prestadora de serviços pagando pouco e ganhando bem.
Porém, em nenhum momento da definição do conceito tradicional de terceirização menciona-se que essa quadrilha desnecessária – sobretudo no âmbito do setor público – serve primeiramente ao enriquecimento de empresários, à sistemática retirada de direitos e escolhas nos ambientes de trabalho, à precarização e ao total desrespeito à vida humana que vêm sendo impostos atualmente à classe trabalhadora terceirizada.
A série de matérias “Terceirização no serviço público”

E nosso diagnóstico é de que o responsável pela existência desse arranjo caótico, inconstitucional e injustificável é ninguém mais, ninguém menos, que ele – sempre ele: o capitalismo. No caso brasileiro, o capitalismo dependente, que é largamente amparado na superexploração da força de trabalho. É por isso que trouxemos, nos textos II e III dessa série, uma tentativa de explicar o real funcionamento da terceirização dentro da lógica do capitalismo, ou melhor: como a ideia amalucada de contratar alguém para que essa pessoa contrate outro alguém só faz sentido quando se entende justamente o intrincado funcionamento do capitalismo.
Atualmente, a face mais cruel desse sistema vem sendo representada pelo governo Bolsonaro, seus fiéis apoiadores e seus ministros: especialmente Paulo Guedes – o Midas da privatização: aquele que tudo que toca vira caso de estudo para ser privatizado.
E nessa situação de eternos cortes de verbas, de criminosas e inconstitucionais reformas (da previdência, administrativa, tributária) que vêm sendo tratoradas, de ajustes fiscais e perdas do poder de compra, enfim: dentro desse caos planejado, os primeiros a sofrerem são a classe trabalhadora. Em especial, a classe trabalhadora terceirizada, condicionada a uma real situação de subemprego, sem direitos assegurados, alvos de inúmeras discriminações e abusos no trabalho, causados, inclusive, por servidores dos órgãos nos quais prestam serviços.
É importante, contudo, lembrar como chegamos até aqui. Por isso acompanharemos no texto IV, que fecha essa série, o histórico legal da terceirização no serviço público, processo brutalmente acirrado pela Reforma Trabalhista de Temer, a Lei 13.429/17. Aqui, a terceirização passou a ser aplicada em atividades-fim, inclusive no serviço público. Mais que isso, chegamos ao absurdo de o Estado poder deixar de ser responsável pelo não cumprimento de suas obrigações, bastando que as delegue para uma terceirizada: por decisão do STF, o Estado só pode ser responsabilizado caso não tenha fiscalizado a empresa que ele contratou para fazer o próprio trabalho. Isto é uma excrescência não só moral, como jurídica, pois já havia súmula do Tribunal Superior do Trabalho que apontava para a responsabilidade do órgão público.
Diante desses absurdos, julgamos urgente a publicação desta série. Modelos de terceirização existem, é claro, há muito tempo, podendo ter a origem retraçada ao século XVIII: basta que se consulte qualquer livro poeirento sobre a história social do trabalho. Mas o que mais nos interessa aqui é o Brasil e o agora: é o crescimento desenfreado da força de trabalho terceirizada nas últimas três décadas, é a onda neoliberal imposta a nós desde 1990, é entender quem somos, onde estamos e para onde vamos.
Um segredo bem guardado: o exército de terceirizados do serviço público
Com vistas à publicação da presente série, O Ipê realizou uma pesquisa sobre os dados existentes acerca dos terceirizados do serviço público no Brasil e no Distrito Federal. O objetivo era descobrir o tamanho, as características e a distribuição da precarização do trabalho no governo federal e distrital e, ao mesmo tempo, vislumbrar a força que a luta organizada dessa classe de trabalhadores pode ter. Mas a tarefa não foi tão simples: os dados são mal organizados, o acesso a eles é pouco transparente, e muitas das consultas realizadas ficaram sem resposta. No fundo, a impressão é de que ninguém se importa o suficiente. E pior, não querem deixar ninguém se importar.
O processo de solicitar os dados sobre os terceirizados e terceirizadas do serviço público do Distrito Federal envolveu consolidar dados fragmentados de diversas secretarias do Governo do Distrito Federal (GDF), do Legislativo e do Judiciário distritais. Depois, restou-nos entrar no site do Sistema Eletrônico de Serviço de Informação ao Cidadão (conhecido como “e-SIC”), fazer um cadastro de usuário, e solicitar os dados das secretarias que nem sequer as disponibilizavam. Fizemos essa solicitação ao longo de um mês, com a seguinte mensagem:
“Gostaria de obter os dados quantitativos dos empregados terceirizados na [secretaria a ser solicitada], a empresa empregadora e sua remuneração. A CGU disponibiliza esses dados em planilha de excel: https://www.gov.br/cgu/pt-br/acesso-a-informacao/dados-abertos/arquivos/terceirizados. Requisito, assim, acesso a informações semelhantes da [secretaria a ser solicitada].”
Das 28 Secretarias que receberam nosso e-mail com a solicitação de dados, 10 nem nos responderam. Das 18 que se deram a esse trabalho, mais 4 responderam que não possuíam os dados disponíveis. Sobraram, então, 14 respostas com os dados, exatamente metade das secretarias.
Além disso, os dados que geralmente nos são passados apenas dizem respeito ao nome da empresa terceirizada contratada, à função e ao setor ou local onde o trabalho é exercido. Outras informações de grande relevância para compreendermos o real nível de exploração desses trabalhadores, como salário e custo de cada servidor, raramente são trazidos, o que impossibilita nossa tarefa de obter informações e fazer análises mais completas acerca dos terceirizados do serviço público do DF. Dados de local de moradia, benefícios, média salarial de certos cargos mais comuns são apenas um sonho distante de verão. Que bela democracia assentada no princípio da transparência nós temos, não é mesmo?
Contudo, os dados que nós conseguimos, a ferro e fogo, acessar e organizar demonstram a força quantitativa que têm os terceirizados do serviço público. Tabelas incompletas da Controladoria-Geral da União (CGU) dão conta de que há pelo menos 80.000 trabalhadores terceirizados apenas na administração federal, que possui parte considerável sediada em Brasília. Descobrir a quantidade de terceirizados no GDF foi, como dito, ainda mais difícil, mas listas da Secretaria de Educação demonstram, no mínimo, a existência de mais de 11.000 terceirizados apenas nessa secretaria do governo distrital. O TJDF e a Secretaria de Justiça apontaram quase 2.000 terceirizados na administração judicial do DF. Diversas secretarias contam com mais de 300 terceirizados em seus quadros.
Trata-se de um exército de servidores do poder público que, unidos, são capazes de parar a cidade que tem 95,7% do PIB ligado ao setor de serviços, dos quais 45,5% provêm da administração pública. Só se pode concluir que a capital administrativa do país simplesmente não funciona sem essa categoria mal remunerada e esquecida, absurdamente precarizada, mas que destranca as portas elitistas da Esplanada e do Buriti.
É papel inadiável da revista O Ipê aliar-se à classe trabalhadora terceirizada para denunciar abusos trabalhistas e reivindicar todos os direitos que temos e os que ainda queremos. Se não conseguimos desfraldar todos os dados sonegados do público acerca da categoria que aqui botamos em evidência, isso não nos impediu de chegar à incontornável conclusão: é preciso dar força à luta da categoria dos servidores públicos terceirizados no Distrito Federal.
A quem interessa a terceirização?
Em reportagem de 2017, Alice Maciel constatou que dos 513 deputados federais brasileiros, cerca de 178 tinham ligação com empresas de trabalhadoras e trabalhadores terceirizados. Isso significa que mais de 1/3 do total de deputados atua seja como sócios, administradores ou representantes dessas empresas. Esse fato demonstra o caráter de classe do Parlamento Brasileiro, sempre do lado do Estado Burguês. Não é surpreendente que várias dessas empresas estejam em nome de familiares ou pessoas próximas e de confiança desses deputados, para que esses não sejam diretamente responsabilizados pelas decisões parlamentares que tomam supostamente no interesse do povo.
O conflito de interesses no DF é ainda mais evidente. A ex-secretária e ex-deputada-distrital, Eliana Pedrosa, atualmente no PDT, teve a mãe como sócia majoritária da empresa Dinâmica e o filho como sócio da Elfe Solução em Serviços Ltda. Foi acusada de participar de esquema de fraude de licitações no governo de Sérgio Cabral, no Rio de Janeiro. Seu sobrinho, Eduardo Pedrosa (PTC), está atualmente na Câmara Legislativa do Distrito Federal (CLDF), representando os interesses da empresa que já captou R$ 795 milhões de dinheiro público ao longo de 15 anos. Já a família de José Gomes, deputado distrital pelo PSD, é ligada à Real JG, agraciada com novo aditivo da secretaria de educação para totalizar R$ 52 milhões pagos pelo GDF à empresa. Não bastasse, José Gomes e seu assessor foram condenados por coagirem os 10 mil funcionários da JG a votarem nele, sob pena de demissão. Isso depois de demitir 12 funcionárias simplesmente por serem indicação política de seu rival. Chega, né? Não, ainda não.
O pai de Robério Negreiros Filho (PSD) é dono da Brasfort, que já recebeu mais de R$ 1 bilhão do GDF desde 2007. O ex-deputado Cristiano Araújo, por sua vez, era sócio de várias empresas, entre elas, a Vipasa, empresa que presta serviços de segurança em regime de terceirização para o governo. O deputado distrital Valdelino Barcelos (PP) é presidente licenciado da Coopercam-DF, empresa que aluga máquinas e caminhões para o GDF e já recebeu em troca por isso o valor de R$ 419 milhões desde 2009. Para fechar a lista, o próprio presidente da Câmara Legislativa: a empresa 5 Estrelas é do pai de Rafael Prudente (MDB), o também ex-deputado distrital, Leonardo Prudente. Desde 2007, a empresa recebeu R$ 55 milhões em contratos com o GDF.
Essas empresas, em geral de pouca sustentabilidade financeira, não têm estrutura para suportar os parcos encargos trabalhistas obrigatórios por lei e superexploram os trabalhadores como forma de maximizar os lucros: só conseguem sobreviver pela terceirização. Como consequência, muitas trabalhadoras e trabalhadores ficam anos sem desfrutar dos direitos mais básicos. Nesse contexto, é famoso o exemplo das férias trabalhistas. Ao chegar o período de férias, todos os funcionários são demitidos e recontratados pela mesma empresa, reformulada com nome, cor e uniforme distintos: é a famosa “troca de crachás” do ano novo brasiliense. A farra da exploração.
O ciclo de corrupção vai ainda mais longe. Pessoas próximas ao poder valem de seus cargos ou influência econômica para explorar a oportunidade de terceirizar certos setores e lucrar diretamente com isso, atuando em busca do sucateamento de serviços como educação, transporte, segurança e saúde. Passam, então, a esposar os argumentos neoliberais da necessidade de corte de gastos e privatização do Estado, que, sem recursos, vê na terceirização uma tábua de salvação para diminuir os gastos com pessoal. Como são essas mesmas pessoas que possuem empresas no ramo dos serviços terceirizados, elas podem, assim, fechar o ciclo de transferência de dinheiro público para seus negócios privados: sempre às custas da qualidade do serviço prestado à população.
Assim, a “isonomia remuneratória” para terceirizados – isto é, a exigência de que trabalhadores recebam o mesmo salário quando executam o mesmo trabalho – soa como completo despropósito para os defensores “desinteressados” do liberalismo eficiente. O crescimento do desemprego não parece, então, tão assustador, uma vez que tem o lado “positivo” de forçar a classe trabalhadora a aceitar as piores condições de emprego, a serem “negociadas” com o patrão desde a reforma trabalhista de Michel Temer. E, por fim, um exército de desempregados (o exército de reserva de que o velho Marx falava) tem que se voltar ao “empreendedorismo” de aplicativos e novos negócios, fadados ao fracasso em um país que afunda em recessão desde 2015.
Agora perguntamos e respondemos: é justo que isso aconteça? É justo que essas pessoas façam uso dessas informações privilegiadas em benefício próprio? É justo que em favor de suas próprias empresas promovam a terceirização, acarretando rebaixamento de salários; maior adoecimento no trabalho [10]; maior quantidade de acidentes [11]; e a quebra da unidade da categoria profissional, enfraquecendo ainda mais o movimento sindical? Não. É óbvio que não é.

Para não concluir
A pandemia do COVID-19 serviu para nos mostrar e nos provar mais uma vez o quanto o trabalho do terceirizado é essencial, o quanto dependem de nós, a classe trabalhadora, composta por terceirizados e não terceirizados. Mesmo assim, é sempre a nossa classe a perder o emprego, a ter reduções salariais, a sofrer com cortes de benefícios e de direitos.
É preciso urgentemente unir a classe trabalhadora no sentido de compor amplos movimentos em defesa de direitos e de melhores condições de trabalho. Igualmente, faz-se necessário seguir buscando informações, expondo os dados, denunciando os descasos, e publicizando nossos achados acerca das condições de trabalho no serviço público, especialmente no Distrito Federal.
Contamos, para isso, com a participação dos camaradas terceirizados e não terceirizados do serviço público na luta por uma vida que não seja de migalhas. Seguiremos lutando, assim, contra as demissões dos terceirizados no Serviço Público. Lutaremos para que todos sejam efetivados sem a necessidade de concurso público. Lutaremos pela estabilidade no emprego e pela isonomia remuneratória. Seguiremos lutando, sempre, pela defesa dos empregos, dos direitos e da vida.
[…] primeiro texto dessa série, mencionamos um dos impérios da terceirização no DF: a empresa Real JG, ligada ao […]
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Sou merendeiro estatutário do município do RJ. Desde o primeiro mandato do atual prefeito, não se abre concurso para merendeiras. Vem ocorrendo a terceirização nas cozinhas. O que se comenta é que não haverá concurso para merendeiras. Estão nos sobrecarregando de serviço, já que não misturam estatutárias com terceirizado. A medida que as efetivas se aposentam, readapita ou ocorra qualquer outro motivo que as impossibilita de atuar nas cozinha , é feita a terceirização na unidade, realocando para outra unidade o funcionário efetivo de forma que o quadro de efetivo fique satisfatório e não aja a mistura entre estatutárias e terceirização. Trabalho em uma escola da zona oeste com média de 420 alunos , sem contar funcionários e professores . Somos apenas dois merendeiras na cozinha. Servindo lanches as 9h ,10h ,14h:30 . Almoço para todos das 12h até 12:50. Cortando, cozinhando, lavando , limpando ou seja executando todo serviço. Saiu a nomenclatura para cozinheiro e o nosso prefeito , até hoje não nos deu. A verdade que a palavra merendeira não existe no dicionário, isso funciona como auxiliar de serviços gerais ( faz tudo ). Minha companheira de trabalho, vai se aposentar segundo ela. Não sei se vão querer terceiriza a unidade em que trabalho. Minha origem é na mesma escola desde que fiz concurso. Será que vou ser obrigado a procurar escola ? Faço 20 anos de municipio em janeiro de 2023 . Essa é a mas pura realidade.
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Eu trabalho há 20 anos tercerizado numa escola estadual na cidade de Luis Correia no estado do Piauí, faço vários serviços mas sou auxiliar de secretaria, não tenho direito à abono férias, assistência médica,PASEP só mesmo o salário limpo e o 13 e trabalho 40 hs semanais e qd falta a única merendeira da escola,vou fazer o lanche e servir
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[…] como vimos ressaltando nessa série da revista O Ipê, o que presenciamos na prática é um verdadeiro ataque à estabilidade […]
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