Plano do governador Ibaneis Rocha seria militarizar até 200 escolas do Distrito Federal até o fim de seu mandato. A luta dos trabalhadores da educação reverteu o quadro.
por Guilherme Ribeiro
Castelo Branco, então chefe do comando militar do Nordeste, participou da última aula de Paulo Freire em Angicos e disse ao pé do seu ouvido: “Eu desconfiava que o senhor era subversivo, agora tenho certeza. O senhor demonstrou que era contra a hierarquia e nós não podemos admitir isso”.
Desde que tomou posse, o governo do presidente Jair Bolsonaro tem como um dos alvos preferidos a educação. Além de cortes absurdos de verbas, há em vigor um projeto de militarização das escolas públicas brasileiras: só no Distrito Federal (DF), 16 escolas já foram militarizadas, enquanto se estima que o plano de Ibaneis Rocha seria de militarizar 200 até o fim do seu mandato.
Além disso, tem surgido vários cursos, formações militares e paramilitares para crianças e adolescentes no DF, com foco em valores militares, conservadores e ultranacionalistas. Movimentos sociais da classe trabalhadora, em especial estudantes e professores, conseguiram conter o avanço do projeto de Ibaneis.
Bolsonaro: inimigo da Educação
As primeiras ações, apresentadas já no início do governo Bolsonaro, foram os cortes de verbas de universidades públicas e ameaças do não reajuste do piso salarial para os professores da educação básica. Estes cortes têm se estendido durante todo o governo. Há cerca de trintas dias, um novo corte de R$3,2 bilhões do orçamento do Ministério da Educação (MEC) foi decretado. Não só as universidades públicas e institutos federais sofreram. A tesoura também recai sobre o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) que operacionaliza os recursos de transferências de dinheiro para obras aos municípios no que tange a política de educação.
Mas nem só de cortes vive o governo Bolsonaro. Também foi dada ao MEC a missão de promover sua disseminação ideológica militar e conservadora, banindo qualquer tipo de abordagem reflexiva, emancipadora de direitos, de gênero e saúde sexual nas escolas. A justificativa de tal disseminação seria a de garantir liberdade e “neutralidade” dos estudantes, e que assuntos como estes não são recomendados no ambiente escolar, pois o objetivo educacional deve ser a disciplina e o “respeito à família”.
Outro caráter idealizante do MEC é a implantação de escolas cívico-militares, que Bolsonaro quer estabelecer em todos os estados do país em parceria com os municípios, servindo de antídoto à violência urbana e de formação para disciplina e bom comportamento dos jovens. No Distrito Federal, a militarização das escolas públicas está em andamento e o que se vê são denúncias de professores e estudantes de abordagens violentas, coercitivas e punitivas dos policiais no ambiente escolar.
A Doutrina de Segurança Nacional: consolidação de regimes militares e dominação dos EUA nos países latino-americanos
A relação entre militares e a ideologia conservadora no ensino, tal como se configura hoje, tem origem na Doutrina de Segurança Nacional (DSN), esqueleto teórico que fundamentou os regimes militares, justificando a emergência e o protagonismo das Forças Armadas no conturbado cenário político dos países sul-americanos a partir dos anos 60. Refletindo a lógica bipolar da Guerra Fria e as novas estratégias de dominação dos EUA sobre a América Latina (o que nos tornou uma nação capachista), a DSN se disseminou através das Academias e Escolas de Guerra, formando quadros especializados e vinculando-se organicamente a uma série de conceitos geopolíticos básicos, como as zonas de influência das superpotências e a satanização do inimigo, concretizado em um virulento anticomunismo.
O inimigo do DSN é baseado em elementos da realidade como o regime cubano e a influência da União Soviética, além da disseminação de diversas frentes de esquerda no território latino-americano. Ideologicamente, é claro, a DSN visa sobretudo a combater o comunismo. Parte desse combate é disseminar uma visão deturpada dos comunistas, segundo a qual seu objetivo seria destruir valores do chamado Ocidente e suas instituições: a família, o cristianismo, as tradições, a moral burguesa.
Caracterizado o inimigo, a DSN atua no combate de qualquer manifestação de esquerda como se fosse de cunho comunista através das Forças Armadas e de Regimes Ditatoriais Militares. As políticas de educação, é claro, incluem-se no campo de combate ideológico. Na verdade, o ambiente escolar é um importante mecanismo para implantação destas ideias.
Intervenção militar combate o Plano de Alfabetização de Paulo Freire
No Brasil, o chamado combate ao comunismo, no âmbito educacional, tem como alvo Paulo Freire, sua atuação, seu pensamento, sua pedagogia. Marcos Guerra participou e coordenou com Freire o chamado “Processo Revolucionário da Educação”, alfabetizando trezentas pessoas em quarenta horas em Angicos (RN), em 1963. Ele conta no documentário Paulo Freire, 100 anos (TV Cultura, 2021), que o mestre dizia e repetia que a educação brasileira estava inundada por um estatuto de dominação e por uma “pedagogia do silêncio”.
Marcos relata ainda que o projeto político e metodológico de Freire colocava em larga escala pessoas que estavam à margem da sociedade, excluídos do acesso aos direitos e que não participavam da escolha eleitoral, dentro do sistema político. “Aquilo foi uma ofensa para uma parte da sociedade, que era detentora do poder político civil e, principalmente, os militares”.
Marcos Guerra relata um diálogo curioso entre Freire e Castelo Branco que presenciou: “na última aula, o então governador de Pernambuco convidou João Goulart (Jango), presidente, para discursar e conhecer a experiência de Angicos. Na ocasião haviam, nesta aula, vários convidados, inclusive o chefe da Região Militar, Castelo Branco, que participou do encerramento. À noite, quando fomos jantar já em Recife, na casa do governador, após o discurso de Freire, Castelo Branco sentou-se ao seu lado e disse: ‘eu sabia, eu desconfiava que o senhor era subversivo, mas agora eu tenho certeza! Porque o senhor demonstrou em seu discurso que é contra a hierarquia e nós não podemos admitir isso’”. Castelo Branco era chefe do comando Militar de todo o Nordeste. Após o diálogo, declarou a um jornalista que “estavam criando cascavéis no Nordeste”.
Intervenção militar combate o Plano de Alfabetização de Paulo Freire
No Brasil, o chamado combate ao comunismo, no âmbito educacional, tem como alvo Paulo Freire, sua atuação, seu pensamento, sua pedagogia. Marcos Guerra participou e coordenou com Freire o chamado “Processo Revolucionário da Educação”, alfabetizando trezentas pessoas em quarenta horas em Angicos (RN), em 1963. Ele conta no documentário Paulo Freire, 100 anos (TV Cultura, 2021), que o mestre dizia e repetia que a educação brasileira estava inundada por um estatuto de dominação e por uma “pedagogia do silêncio”.
Marcos relata ainda que o projeto político e metodológico de Freire colocava em larga escala pessoas que estavam à margem da sociedade, excluídos do acesso aos direitos e que não participavam da escolha eleitoral, dentro do sistema político. “Aquilo foi uma ofensa para uma parte da sociedade, que era detentora do poder político civil e, principalmente, os militares”.
Marcos Guerra relata um diálogo curioso entre Freire e Castelo Branco que presenciou: “na última aula, o então governador de Pernambuco convidou João Goulart (Jango), presidente, para discursar e conhecer a experiência de Angicos. Na ocasião haviam, nesta aula, vários convidados, inclusive o chefe da Região Militar, Castelo Branco, que participou do encerramento. À noite, quando fomos jantar já em Recife, na casa do governador, após o discurso de Freire, Castelo Branco sentou-se ao seu lado e disse: ‘eu sabia, eu desconfiava que o senhor era subversivo, mas agora eu tenho certeza! Porque o senhor demonstrou em seu discurso que é contra a hierarquia e nós não podemos admitir isso’”. Castelo Branco era chefe do comando Militar de todo o Nordeste. Após o diálogo, declarou a um jornalista que “estavam criando cascavéis no Nordeste”.
Isto não intimidou Freire nem Jango. Posteriormente, o então presidente convidou o educador para levar o projeto para o Ministério da Educação, a fim de que o Plano Nacional de Alfabetização se espalhasse pelo Brasil. Contudo, com o golpe militar de 1964, Castelo Branco (primeiro presidente do regime ditatorial) exigiu o fechamento do Plano. Jango foi golpeado e Freire chamado para dar explicações. Ficou preso por quarenta dias e foi exilado por 16 anos.
Mais tarde, Paulo Freire, em um programa de televisão no ano de 1990, disse que foi preso pela Ditadura Militar por ter sido considerado “um perigoso subversivo internacional, inimigo do povo brasileiro e de Deus”.
O Método Paulo Freire de alfabetização de adultos consiste em estimulá-la mediante discussões dialógicas a partir das experiências de vida dos estudantes. Adotam-se palavras presentes em sua realidade, que são decodificadas até chegarem à escrita, compreensão e leitura do mundo. É um método emancipador e libertador.
A partir do fragmento histórico da experiência de Angicos, vemos claramente a interferência do regime militar alinhado às formações e diretrizes da DSN, instância imperialista americana de controle sobre os países do eixo Sul, sendo o Brasil um deles. O método emancipador de Paulo Freire era considerado por Castelo Branco, e ainda é nos dias de hoje: subversivo, ideológico e perigoso, devendo ser combatido, por ser contrário à hierarquia e aos valores tradicionais, conservadores e cristãos da sociedade ocidental.
Escola Sem Partido: combate à “doutrina de esquerda”
Valores tradicionais e conservadores tão difundidos nas escolas cívico-militares também fazem parte do projeto Escola Sem Partido (ESP), fundado em 2004 pelo advogado Miguel Nagib. A ESP é um movimento criado em 2004 que se coloca como representante de ideias ultraliberais, conservadoras e com fundamentos religiosos, que também visa combater o que eles chamam de “doutrina de ideologia de esquerda nas escolas”.
Nagib defende que as ideias de Paulo Freire (Patrono da Educação Brasileira) ferem a constituição, justificando que o uso da sala de aula para efeito de transformação e emancipação da sociedade viola a liberdade dos alunos e a neutralidade política do Estado. Mesmo após quarenta anos do golpe militar, propugna que o método freireano de educação ainda deve ser perseguido e extinto. Além disso, o idealizador Miguel Nagib é cunhado da deputada de extrema direita Bia Kicis (PL-DF) – que vem tentando instituir o ESP por meio de projeto de lei federal. Nagib também conquistou a família Bolsonaro. O vereador Carlos Bolsonaro (Republicanos/RJ) já apresentou o ESP como projeto de lei municipal.
Em 2015, professores e estudantes criaram um movimento nas redes sociais contrário à ESP, chamado “Professores Contra a Escola Sem Partido”. Este importante movimento social da classe trabalhadora se disseminou, além de ter colaborado na identificação de casos, denúncias e ameaças de assédio moral em ambiente escolar. Em 18 de julho de 2019, Miguel Nagib anunciou que o ESP seria encerrado por falta de apoio do presidente Bolsonaro. Porém, a luta e os movimentos sociais da classe trabalhadora tiveram total participação para o fim deste projeto.
Projeto de Militarização das Escolas do Distrito Federal e a luta de contenção de Professores e Estudantes.
Mesmo com o fim da ESP, o projeto de militarização da educação pública está em pleno vigor. No Distrito Federal, o plano do governador Ibaneis Rocha seria militarizar até 200 escolas até o fim de seu mandato. Atualmente, o DF conta com 16 escolas militarizadas, sendo 6 compartilhadas com a Polícia Militar do Distrito Federal (PMDF), quatro com o Corpo de Bombeiros Militar do Distrito Federal e duas com as Forças Armadas, como mostra a entrevista com Amaral Gomes publicada na Revista O Ipê.
A entrevista também nos mostra como tem sido a “pedagogia militar” nas escolas, com atitudes repressivas, humilhantes, coercitivas e violentas para com os estudantes. Este modelo de escola prega a punição e o silenciamento em nome da disciplina e da hierarquia.
Vê-se portanto que esse projeto de militarização atual não é fruto do acaso, não nasceu do nada a toque de mágica. A militarização da educação que estamos vendo hoje é fruto de processos históricos, ideológicos e imperialistas dos países capitalistas dominantes apresentados até aqui.
A Doutrina de Segurança Nacional, a Ditatura Militar, o Golpe de 1964 (com claras interferências estadunidenses) e a Escola Sem Partido nos mostram a história sendo escrita, bem como a disseminação de ideias distorcidas sobre o método libertador de Paulo Freire, sobre disciplinas de gênero e sexualidade, leitura e compreensão do mundo. A educação libertadora, questionadora, reflexiva e emancipadora da classe trabalhadora, de acordo com esse projeto, deve ser extinta, sendo o inimigo o comunismo e a organização de classe.
Denúncias com vídeos e fotos nas redes sociais têm contribuído para expor violência praticada por policiais no ambiente escolar, dando força às organizações populares e reforçando suas pautas de luta. A mobilização da classe trabalhadora, representada pelos sindicatos dos professores e pelo movimento estudantil, vem conseguindo conter o avanço do projeto militar na educação no Distrito Federal.
O acesso aos direitos básicos, respeito e dignidade do cidadão é e sempre foi conquistado por meio de muita luta, suor e sangue de trabalhadores e trabalhadoras de todo o país. Não foi diferente neste cenário. A luta não para por aqui, ela continua!
Excelente texto! De fato, os valores do militarismo (hierarquia e obediência) são incompatíveis com uma educação emancipadora e formadora de cidadãos críticos. Daí, a importância da resistência a esse projeto oposta por docentes e pelo movimento estudantil. Parabéns ao articulista.
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