Breve histórico da pirataria digital: soluções anódinas para problemas antigos

Como casos concretos de punição à pirataria demonstram a incapacidade atual de pensarmos soluções para o problema da circulação de informações e da propriedade intelectual

por Dione Bigode

Gary Bowser é um homem simples, que gosta de agradar as pessoas. Chegou a ser vítima de abuso doméstico por uma de suas namoradas. Outra namorada foi assassinada enquanto ainda se relacionavam. Aos 15 anos, perdeu sua mãe. Seu irmão mais velho faleceu em um acidente de avião. Ele vivia uma vida pacata, morava em um apartamento simples e recebia de 500 a 1.000 dólares por mês para manter a página web do grupo Xecuter, que desde 2001 já participava do mercado negro de hackeamento de Xbox.

Em 2020, então já na casa dos 50 anos, Bowser viajava da República Dominicana (onde morava) para o Canadá (de onde é cidadão), mas nunca chegou ao seu destino: durante uma ponte aérea em Nova Jersey, agentes federais estadunidenses prenderam-no.

Dos membros do Xecuter, ele foi o único obrigado a encarar as cortes americanas. Tanto o responsável pelo recrutamento de investidores para o grupo, Max Louarn, quanto o responsável pela produção e distribuição de hardware, Yuanning Chen, esquivaram-se das consequências por residirem em países que não tem acordos de extradição firmados com os Estados Unidos. Parte da defesa de Bowser consistiu em demonstrar a vida luxuosa de que ambos disfrutavam, com roteiros dignos de jet-setters.

A ferrenha perseguição ao pirateador de produtos da Nintendo, que resultou em mais de três anos de prisão e multa de US$ 10 milhões de dólares, é só mais um exemplo da violenta reação – individualizada – do aparato punitivo a violações de direitos intelectuais no contexto virtual. Contudo, o controle rígido sobre a circulação de informações não é novo, e o acompanhamento de sua história joga luz sobre o funcionamento da sociedade capitalista.

Recado antigo dos tribunais aos “piratas”

Não é recente a utilização do sistema jurídico para controle da distribuição de informações. Desde que a reprodução de mídia se tornou mais barata – com a invenção da prensa móvel por Johannes Gutenberg, no século XV – duas grandes formas de controle se desenvolveram: a restrição dos meios de reprodução e a quebra de anonimato.

Diante da grande circulação de panfletos críticos aos poderes constituídos, monárquico e eclesiástico, as autoridades logo reagiram com a aprovação de atos legislativos que pudessem enquadrar essa circulação sob os crimes de heresia e traição: restringiam, assim, a distribuição de informações facilitada pelo barateamento da reprodução midiática.

No mesmo sentido, ainda mais decisivas seriam as leis que obrigavam que, em toda e qualquer impressão, constassem os nomes dos proprietários da impressora. Essa legislação tinha como claro objetivo o controle da linha editorial de toda publicação: por meio da vedação ao anonimato, aumentava-se o poder persecutório contra a distribuição de informações indesejadas. Foram essas leis que formaram a base atual dos direitos de propriedade intelectual.

1999 e a nova imprensa móvel digital: o caso Napster

No final da década de 1990, a Internet já se impunha como a nova imprensa móvel, de consequências profundas para a comunicação humana. O conhecimento da lógica de seu funcionamento básico impôs-se, assim, como fundamental para a compreensão dos problemas atuais do intercâmbio de dados informacionais. E, embora a Internet tivesse sido extremamente atualizada nas décadas anteriores, com a unificação de protocolos de comunicação e com o desenvolvimento de padrões de linguagem (como o HTML), o sentido do fluxo de informações continuava a seguir uma mesma direção: um cliente fala com um servidor e este o responde.

Essa configuração de se comunicar com uma central (o servidor) remonta, inclusive, ao tempo em que os computadores ocupavam prédios inteiros, uma vez que era comum existir um mainframe – um PC parrudo – e vários terminais “burros”, que apenas enviavam comandos para ele. Isso tinha implicações diretas no processo de distribuição de quaisquer conteúdos descentralizados e, consequentemente, de conteúdo pirata: manter um único servidor não era algo simples ou barato, exigindo altíssimos investimentos, sem contar que a interrupção dessa fonte quebrava a cadeia inteira de transmissão.

Aliada à dificuldade de criar essas centrais de material pirata, a velocidade da internet era muito reduzida, impossibilitando a organização desse tipo de serviço usando uma conexão residencial. O único conteúdo que realmente era passível de ser enviado de forma barata e massificada era em formato de texto, pois não se conhecia maneiras de compactar mídias como áudio e vídeo de forma trivial e em alta qualidade.

Contudo, quando as estrelas se alinharam, nasceu o Napster, um serviço de compartilhamento de arquivos (sobretudo de música, em formato MP3), que trouxe uma diferença revolucionária: a comunicação P2P (peer-to-peer, ou ponto a ponto). No lugar da transferência de informações entre cliente e um servidor central, emergia a comunicação direta entre os usuários.

Em uma estrutura transparente ao usuário, o Napster manteve a mesma interface de pesquisa comuns aos servidores, facilitando a utilização do serviço. No entanto, em vez de guardar em HDs do Napster as músicas dos usuários, ele apenas mantinha cópia da informação de outras pessoas que possuíam os arquivos de música, isto é: os arquivos eram transferidos sem um servidor, diretamente entre os usuários. O serviço apenas compartilhava as informações relacionadas à localização dos arquivos na rede.

É claro que outras mudanças – como o desenvolvimento de tecnologias de compressão de dados, a exemplo do MP3 – também contribuíram com a transformação do cenário comunicacional da Internet, uma vez que tornavam os arquivos menos pesados, facilitando sua transferência.

Porém, o Napster reorganizou o caminho da informação de uma forma sutil, de maneira que os usuários passaram não apenas a transferir arquivos entre si, mas também começaram a alimentar uma extensa rede de arquivos. Dessa forma, qualquer indivíduo com acesso a gravações de músicas, de shows, de obras etc. passou a ter um espaço de compartilhamento que ia além de seu HD pessoal.

Como já vimos anteriormente, entretanto, os processos de circulação de dados são duramente combatidos por seus detentores privados. Como a vedação ao anonimato seria um instrumento de difícil utilização nesse caso, era esperado que a força da burguesia viesse defender a propriedade privada por meio do controle dos meios de circulação de conteúdo. A livre e gratuita circulação de informações não seria impunemente tolerada sem que a burguesia viesse clamar a estrutura capitalista de propriedade e de sua reprodução.

2000 e a velha história da propriedade: o caso do Metallica

A banda de heavy metal, Metallica, seria o pivô de um marco jurisprudencial em casos de direitos autorais no mundo virtual. Uma versão demo da música “I Disappear” circulou pelo Napster, o que levou a banda e seus representantes a investigarem o serviço. Não demorariam a perceber que não era apenas a versão demo de uma música que estava por lá, mas sim toda a sua discografia.

Sem demora, em março de 2000, o Napster foi logo agraciado com o famoso processo judicial, por ter se recusado a retirar as músicas da plataforma. A moda pegou e vários outros artistas seguiram a mesma linha, o que culminaria no processo da A&M Records, no qual, pela primeira vez, foram aplicadas as leis de direitos autorais em sistemas de distribuição P2P.

Como não era possível quebrar o anonimato daqueles que compartilhavam as músicas, a estratégia foi, como antecipado, limitar os meios de reprodução e circulação de conteúdo. Em junho de 2001, o Napster teve sua rede inteira derrubada, além de ser condenado a pagar uma vultuosa indenização no valor de US$ 26 milhões.

Apesar de tudo, o efeito Streisand – fenômeno em que a tentativa de censurar ou suprimir informações acaba por trazer mais atenção a elas – já estava em pleno funcionamento: centenas de outras soluções ganharam visibilidade por usar a nova tecnologia P2P, e muitos usuários foram migrando para alternativas como Gnutella, Soulseek, eDonkey2000, eMule e Kazaa, rapidamente popularizados.

Curioso caso do Spotify: voltando para o servidor

Em 2006, a Internet estava 100 vezes mais rápida do que em 1999. Os processadores tiveram quedas ainda maiores em seu preço. O próprio acesso à Internet começou a ser popularizado, sendo agora possível ter servidores na sua própria garagem. A tecnologia que apenas engenheiros podiam ver em seus ambientes de trabalho chegara ao conforto do lar. Assim, tornou-se possível criar pequenas soluções caseiras para algumas defasagens que existiam no mundo virtual.

As oportunidades eram virtualmente infinitas: iam desde a criação de servidores para jogos online até o desenvolvimento de mecanismos de busca para realização de pesquisas em catálogos de bibliotecas. Uma dessas soluções, porém, abriu um novo caminho nos fluxos de informação: em vez de ter de baixar um arquivo de vídeo para depois executá-lo em seu computador, fez-se possível vê-lo em seu próprio navegador. O YouTube começou, então, a reverter a tendência de desenvolvimento do compartilhamento de dados na Internet, possibilitando novamente centralizar a informação para a distribuição em servidores.

Apesar desse movimento reverso inicial, o P2P nunca morreu. Mantendo sempre o foco no anonimato e na descentralização, houve um aumento significativo de seu uso pela criação do protocolo torrent: o servidor que antes guardava um arquivo com seus donos passou a arquivar apenas um código, que permitia à rede bittorrent indicar de onde se podia baixar os arquivos pretendidos. Em sites como what.cd, Oink, Waffles, entre outros, tornou-se possível baixar música com qualidade de vinil em segundos. Era comum que usuários armazenassem terabytes (1.000 gigabytes) de música em seus HDs, com os mais diversos gêneros musicais.

Uma dessas pessoas criou o protótipo do que viria a ser conhecido como streaming de músicas. Usando um desses HDs, foi desenvolvido um aplicativo que permitia o compartilhamento por streaming instantâneo de todas as músicas armazenadas, contemplando artistas de todo o mundo e de todas as épocas. Dessa maneira, criou-se o aplicativo Spotify, que fecha o ciclo evolutivo do compartilhamento de dados na Internet: os próprios frutos da pirataria foram reapropriados para um sistema servidor-cliente, onde não é mais necessário ter espaço para salvar suas músicas, bastando uma conexão à Internet. Com a popularização dos smartphones – o lançamento do iPhone aconteceria em 2007, enquanto o do Android seria feito em 2008 – o novo modelo dominaria rapidamente o mercado.

Sentido político da pirataria: uma questão em aberto

A legalidade e conveniência da pirataria, em diferentes períodos históricos, trazem em si diversas contradições. A própria criação do Spotify dependeu, como vimos, de uma estrutura e de uma cultura pirata: ele foi, inclusive, desenvolvido na Suécia, mesmo país que assistiu à criação do primeiro Partido Pirata do mundo.

A plataforma do partido baseia-se na reforma das leis de direitos autorais e de patentes, advogando o livre compartilhamento de informações e a neutralidade da Internet. Apesar de sua história famosa, sua luta não tem sido bem-sucedida. Uma de suas poucas vitórias, ocorrida em 2015, foi a garantia conquistada perante as cortes suecas de que os provedores de acesso não poderiam bloquear conexão a sites de pirataria – nesse caso, o Pirate Bay. Em 2017, porém, a situação foi revertida, e o site até hoje não é acessível por meios tradicionais.

Não estamos advogando a violação irrestrita aos direitos intelectuais e de propriedade privada no contexto virtual. É preciso que fique claro que soluções pontuais para a distribuição material e para a distribuição de informações não funcionam a longo prazo. Desejou-se, isso sim, apresentar criticamente o desenvolvimento do aparato repressivo criado para lidar com a contradição que a reprodução e circulação de informações e produtos imateriais gera no seio da sociedade capitalista.

A pressão das grandes corporações atravessa as fronteiras das nações e os limites da cultura, enquanto o resguardo de seus interesses supera qualquer racionalidade nas soluções dos problemas que sua própria existência cria – como claramente demonstram os casos da impiedosa punição individual de alguns poucos culpados. Indica-se, assim, a urgência do debate acerca da regulação da Internet, da democratização da infraestrutura virtual e da utilização da tecnologia digital para superação das contradições inerentes a nossa atual forma de organização.

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