Exu, o carnaval e o racismo: o negro drama vivido a partir do dia seguinte à Quarta-feira de Cinzas não pode ser apagado por uma festa cada vez menos enraizada
por Daniel Fernandes
Exu não era um orixá, passou a ser. Ele era apenas um mensageiro, um intermediário, e hoje ocupa um lugar central no panteão mítico da umbanda e do candomblé, tornando-se deus entre dois mundos: uma mediação encarnada ou por encarnar, o senhor das contradições e do mercado, o orixá que arremata a violência com violência e protege as casas de axé, as tocas e ocas, e aqueles que sofrem com a ameaça mortífera do racismo.
Segundo um de seus vários oríkìs, os louvores tradicionais, “Exu faz o erro virar acerto e o acerto virar erro”. Ele está na retaguarda do axé e é a vanguarda de iniciados e não-iniciados nas encruzilhadas da vida e da morte. Até Macunaíma, o “fio de Exu”, o “herói da nossa gente”, com as bençãos de Tia Ciata, buscou Exu “para se vingar de Venceslau Pietro Pietra”.
Edison Carneiro – para quem Exu, na origem, não era orixá (como dito acima), mas “um criado dos orixás e um intermediário entre os homens e os orixás” – explica que tal entidade “é como um embaixador dos mortais”, que objetiva “realizar os desejos dos homens”, cumprindo “a sua missão com uma precisão matemática, com uma eficácia e uma pontualidade jamais desmentidas”. Aliás, toda atividade cerimonial, toda festa deve começar “com o despacho de Exu (padê)”.
Por sua vez, Clóvis Moura anunciou o papel desse orixá na quimbanda e indicou como, aqui no solo brasileiro, ele adquiriu característica libertadora, aparecendo como “símbolo de destruição de tudo que é estabelecido”, o “centro da festa”, aquele que “tem uma visão crítica, irreverente e anticonvencional das coisas”. É forçoso despachar, conforme Moura, que:
“as camadas proletarizadas, ou marginalizadas, que precisam ‘fechar o corpo’ ante a agressão permanente e a violência da sociedade competitiva, precisam de um protetor também violento, capaz de imunizá-las das agressões exteriores e permitir-lhes a vitória sobre os seus poderosos inimigos (…). Exu surge para eles como essa divindade protetora. Não é mais um auxiliar de Ifá africano, ou auxiliar dos orixás dos candomblés baianos, mas uma entidade independente, superior, todo-poderosa, polimorfa e invencível, com poderes ilimitados e sem reservas no uso desses poderes, contanto que os seus protegidos sejam salvos”.
O carnaval, o carnaval (vai passar)
No carnaval desse ano de 2022, que ocorreu em abril por conta da pandemia, em que enredos entoaram cantos e ecos honrosos da cultura de resistência negra, Exu apareceu. Exu venceu com a vitória da Grande Rio. Não só isso, oito das doze escolas do Grupo Especial do Rio de Janeiro e sete das quatorze escolas em São Paulo apresentaram, na avenida, “enredos que homenagearam personalidades negras, a cultura afro-brasileira e o protagonismo negro na história do país”.
Os enredos na Sapucaí enunciaram em voz alta, além de outros temas, ícones da história negra brasileira, como fez a Mangueira, ou espaços e momentos de resistência do povo negro, enaltecendo glórias e histórias, como o Salgueiro, a Beija-Flor, o Paraíso do Tuiuti e a Portela. A Vila Isabel, por sua vez, homenageou o compositor e cantor Martinho da Vila e a Mocidade fez uma exaltação a Oxóssi, outro orixá.
Em São Paulo, no Sambódromo do Anhembi, a Colorado do Brás e a Mocidade Alegre homenagearam, respectivamente, Carolina Maria de Jesus e Clementina de Jesus. A Acadêmicos do Tatuapé mostrou a simbologia do Preto Velho e a Barroca Zona Sul falou sobre Zé Pelintra. Igualmente, a Vai-Vai fez homenagem aos povos africanos, assim como a Águia de Ouro cantou sobre a cultura afro-brasileira.
Essas tramas carnavalescas de São Paulo e do Rio revelaram uma “oferenda” contra o racismo, contra a intolerância religiosa (materializada em ataques e invasões a terreiros), contra os assassinatos e o encarceramento em massa da população negra, que continuam acontecendo diariamente em nome do “combate às drogas”, uma guerra sem fim. Aliás, 77% das vítimas de homicídio no Brasil são negras, conforme o Atlas da Violência 2021, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP).
Tais enredos pareceram reeditar os tempos gloriosos e sofridos da cultura de resistência negra, em que, desde que o samba é samba, por telégrafos, a norma policial tentava impedir fugas de negros escravizados e buscava o paradeiro de quilombolas e insurgentes ou, mais tarde, pelo telefone, quando os chefes de polícia reprimiam as rodas de samba e de capoeira. Fez relembrar, também, quando Tia Ciata, Tia Perciliana, Tia Amélia, do Recôncavo baiano ao Rio de Janeiro, na região conhecida como Pequena África, promoviam “em suas casas, sessões de samba e de candomblé”, junto com Mauro de Almeida, Sinhô, João da Baiana, Donga, Mestre Germano, Pixinguinha, entre outros. E sem folguedo, também é bom trazer à baila Isnard e Candeia, segundo os quais “para se falar em samba temos que falar em negro, para se falar em negro temos que contar sua árdua luta através de muitas gerações”.
Os moradores do morro, ex-escravizados e seus descendentes, criaram suas próprias formas de sobrevivência física e material, formando inúmeros grupos que objetivavam a sua organização em vários níveis. Inicialmente surgindo com a função de lazer, a escola de samba se tornou um grupo de resistência negra. No dizer de Clóvis Moura, considerando a situação social concreta de marginalidade em que se encontrava, “o negro do morro, favelado, tinha de organizar-se para que (…) pudesse sobreviver e praticar uma série de atividades que o preservariam de um estado de anomia total”.
O carnaval tem sido e é uma espécie de confecção simbólica da sociedade brasileira, mas sem o racismo, aparentemente escamoteado. Essa festa também fantasia, com suas alegorias, pelo menos até a quarta-feira de cinzas, o status humano negado cotidianamente ao negro. E a escola de samba, parafraseando a obra de Isnard e Candeia, transformou-se na árvore que esqueceu sua raiz.
Na verdade, ela teve, consciente ou intencionalmente, a sua raiz cortada, a raiz da luta, da organização, da contracultura, da emancipação e da liberdade. Na dimensão da alienação, inclusive no campo prático de construção da festa, as escolas passaram a ser engolidas pela sociedade capitalista, que tem o condão midiático e turístico de colocá-las sempre a serviço de seus interesses.
A face libertadora de Exu
Na realidade, pois, Exu não venceu. Mais uma vez, diante de inúmeros “casos isolados”, desde o dia 14 de maio de 1888 (revivendo o que ocorria no escravismo), há exemplos e fatos dessa constatação. Genivaldo foi morto em uma câmara de gás improvisada numa viatura. De modo igualmente brutal e corriqueiro, o racismo vitimou pessoas como Moa do Catendê, Moïse, Kathelen Romeu, o menino Miguel, João Pedro, Beto Freitas, Jane, as crianças de Belfort Roxo, as vítimas do massacre de Paraisópolis, as da chacina do Cabula e da chacina de Jacarezinho, cujo monumento em homenagem às vítimas foi recentemente derrubado…
A figura simbólica de Exu foi forjada como um anteparo ofensivo, mais do que defensivo, contra as atrocidades praticadas pela sociedade branca e embranquecida, a elite burguesa brasileira. É forçoso registrar que o racismo emerge no capitalismo dependente brasileiro como arma ideológica de dominação. E assim tem sido.
Mesmo aqui registrando a compreensão de que há limitações na ideologia religiosa, quanto ao seu conteúdo alienador, não é demais repisar, com todas as letras e sonoridades, que Exu ainda não venceu!
Exu sobressaiu mais uma vez na avenida e deve sempre retornar, no carnaval e em outros espaços de luta, como uma pedra lançada hoje mas acertando de morte ontem o pássaro nocivo e agourento do capitalismo; ou como o senhor do mercado, ao revelar a aparência trágica e mesquinha das equivalências lá postas, ao expor e destruir a obrigatoriedade exploradora e alienante em que seres humanos se relacionam por intermédio da compra e venda de suas mercadorias, sem o indispensável autoconhecimento, sem consciência de classe, conforme denunciado no seguinte drama:
“Admito, seus carro é bonito, é, e eu não sei fazer
Internet, videocassete, os carro loco
Atrasado, eu tô um pouco sim, tô, eu acho
Só que tem que
Seu jogo é sujo e eu não me encaixo”.
De carnaval a carnaval, afastando o jogo sujo, racista e genocida da burguesia, sob os pés de Exu, a mesma pedra atirada contra ela verterá sangue.
Exu vencerá! Laroyê, Exu!
[…] Exu ainda não venceu ! […]
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