Uberização e Trabalho 4.0: entregadores e motoristas têm direito à CLT

por Mateus Cavalcante

Recentemente abordamos o tema das novas relações de trabalho na atual Economia de Bicos. Porém, existe um tópico que merece maior aprofundamento: o evidente vínculo trabalhista de entregadores e motoristas das empresas com os aplicativos como Uber e iFood. Com os recentes desenvolvimentos na área de inteligência artificial e aprendizagem de máquina, empresas de entregas e transporte se utilizam de avanços técnicos para burlar os direitos trabalhistas.

Trabalhos recentes procuram identificar como a automatização dos processos de gerenciamento do trabalho, por parte de empresas como Uber e iFood, aumenta o nível de exploração da classe trabalhadora. O avanço do poder computacional e a utilização de técnicas de inteligência artificial passaram a ser instrumentalizados para extrair mais valor do trabalho.

Os trajetos, o tempo de percurso, os tipos de pedidos, o horário da entrega… Essas e outras informações geradas pela atuação dos trabalhadores nos aplicativos vão ser posteriormente utilizadas para que o “gerente algorítmico” consiga extrair mais e mais valor dos trabalhadores.

O que é o “gerente algorítmico”?

O gerente algorítmico é a “’inteligência” por trás dos aplicativos, ou seja, um conjunto de tecnologias que de forma automática decide quais entregadores irão receber quais pedidos, qual a rota mais eficaz para o motorista da Uber, quando devem ser feitas promoções, o cálculo do preço de corridas, e até a punição aos trabalhadores que recusam uma solicitação do aplicativo.

Essa inteligência é utilizada para dar uma impressão de impessoalidade e neutralidade do aplicativo em relação ao trabalhador. As determinações do aplicativo podem soar como ordens desinteressadas, que apenas reagem às solicitações de clientes, informando ao trabalhador quais pedidos precisam de atendimento. Mas a verdade é que a empresa é quem determina, através do gerente algoritmo, quando e em quanto tempo e por qual preço o serviço será executado.

O iFood, por exemplo, gaba-se por ter utilizado tecnologias de aprendizagem de máquina para diminuir o nível de ociosidade dos seus entregadores. Para o trabalhador, pode ficar a impressão de que ele agora tem mais oportunidade de trabalhar e, assim, aumentar seus ganhos, uma vez que fica menos ocioso. No entanto, isso não passa de uma armadilha, pois, da perspectiva da empresa, ela gerou incentivo para o trabalhador trabalhar mais sem precisar pedir diretamente isso. Ao invés de melhores salários, eles os “deixam” trabalhar mais.

Além disso, usando o fato de que não é determinada previamente ao trabalhador uma escala de trabalho ou local fixo, e uma vez que tudo isso é feito de forma automatizada pelo “gerente algorítmico”, os capitalistas argumentam que surge uma nova relação de trabalho, fundada na liberdade e autonomia do trabalhador.

Ao analisarmos concretamente o trabalho de entregadores e motoristas, porém, vemos que todo seu processo de trabalho é dirigido não por ele, mas pelo “gerente algorítmico”. Esse fato é muito importante para demonstrar que entregadores e motoristas são empregados das empresas, e não parceiros.

Não são parceiros, são trabalhadores

Os capitalistas buscam fugir da legislação trabalhista falseando o vínculo de trabalho através da concepção de que os trabalhadores são parceiros das empresas, empreendedores individuais que se relacionam como iguais no mercado de trabalho digital. A CLT (Consolidação das Leis do Trabalho) no Brasil coloca que são elementos necessários para a caracterização de uma relação trabalhista: subordinação, pessoalidade, não eventualidade, onerosidade e ser o trabalhador pessoa física. O que tudo isso significa?

A subordinação implica em uma relação hierárquica entre o trabalhador e o empregador: um controla e define o processo de trabalho, enquanto o outro segue o que foi definido. Aqui, já fica evidente a existência da subordinação, uma vez que o gerente algoritmo impõe aos trabalhadores a forma da prestação do trabalho, definindo quais corridas serão feitas e qual o preço, sugerindo também uma rota e um tempo de chegada. E ainda há o fato de que a recusa resulta em penalidades, como a suspensão do trabalhador do aplicativo.

Já o requisito de pessoalidade refere-se à impossibilidade de o trabalhador ser substituído por outro para que o trabalho seja realizado. Assim, se os trabalhadores, para acessarem as plataformas, devem se identificar, inclusive tendo seu trabalho avaliado, e se o trabalhador aceita um pedido ou corrida, o trabalho está vinculado à sua pessoa física, configurando, com isso, a pessoalidade.

A não eventualidade também se faz presente, uma vez que muitos dos motoristas e entregadores trabalham entre seis e sete dias da semana, em jornadas que podem chegar a 12 horas diárias. A onerosidade, por sua vez, é dada pelo fato de que os trabalhadores são remunerados pelo serviço prestado. E, como não é necessária a criação de pessoa jurídica para atuar nos aplicativos, daí decorre que a grande maioria dos trabalhadores por aplicativo, senão a sua totalidade, são pessoas físicas.

É por tudo isso que os discursos marketeiros, que tentam iludir os trabalhadores de que estes são parceiros, autônomos e livres em relação às empresas para as quais prestam serviço, não se sustentam, como já reconhecido, inclusive, pelo Tribunal Superior do Trabalho (TST)

A ideia de que a automatização da relação do trabalhador com a empresa desconfiguraria uma relação trabalhista clássica é falsa, não passa de uma desculpa para empregar pessoas sem precisar assinar suas carteiras. A todos os trabalhadores de aplicativo devem ser garantidos os direitos arduamente conquistados pela classe trabalhadora: férias remuneradas, décimo terceiro salário, FGTS, seguro desemprego, entre outros. Infelizmente, não é o que vem ocorrendo. Como adiantou Marx, o trabalhador dito “livre” vê-se livre das antigas relações de trabalho, mas também é feito livre de toda forma de sobrevivência, livre de toda propriedade e, nesse caso, livre de todos os direitos trabalhistas.

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