A trajetória do artista brasiliense Pedro Martins ilustra a capacidade da arte de revolucionar o mundo, a importância das políticas de fomento cultural e a urgência da luta pelo fortalecimento da categoria trabalhadores da cultura.
por Juliana Seixas e Raul Floriano
A Revista O Ipê inicia a presente série de matérias sobre personagens da cena artística do DF com o intuito de promover a cultura local, apresentar as dificuldades para sua plena realização e iniciar o debate sobre os caminhos para a superação desses obstáculos.
Tendo isso em vista, realizamos entrevista exclusiva com o artista brasiliense Pedro Martins, cujos relatos e reflexões ajudam a compreender as trajetórias, os desafios e os percalços da profissão teatral no Distrito Federal.
Histórico das políticas de fomento do DF: Arte por Toda Parte e Temporadas Populares
A história traçada pela maioria dos trabalhadores da cultura imbrica-se com os mecanismos clássicos de incentivos econômicos para a categoria, sejam os mais antigos, como o Arte por Toda Parte e o Temporadas Populares, sejam os atuais, como o Fundo de Apoio à Cultura (FAC), a Lei de Incentivo à Cultura (LIC) e a Lei Orgânica de Cultura (LOC). O histórico de nosso entrevistado ilustra bem a evolução e a importância dessas políticas de fomento tantas vezes negligenciadas por gestores e pela própria sociedade.
Pedro Martins é um multiartista nascido em Brasília em 1980 que conta com uma trajetória rica iniciada nos bastidores de diversos palcos da capital. Foi a partir deles que teve vista privilegiada de espetáculos que incluíram desde apresentações de trupes artísticas que marcaram época na cidade – como a configuração inicial do Jogo de Cena – até espetáculos de dança em academias que ajudaram a moldar a cultura do DF – como a de Lúcia Toller.
Foi assim que, aos poucos, esse artista foi se descobrindo, em meio a uma vivência cultural ainda amadora, mas que incluiria encontros fortuitos e contatos diretos com nomes conhecidos da cidade, como Robson Graia, Hugo Rodas, Júlio Cruccioli, entre muitos outros que despertariam o prazer artístico em Pedro Martins.
Em sua adolescência, Pedro pôde viver período mais generoso de políticas públicas no setor cultural, em que muitos espetáculos e grupos teatrais ofereciam oficinas, palestras e debates, além de haver políticas efetivas para descentralização da arte em direção às RA’s, como os projetos Arte por toda Parte, durante a gestão de Joaquim Roriz (então do PP/DF e PMDB/DF), e o Temporadas Populares, do governo de Cristovam Buarque] (à época no PT/DF). Foi por meio desse último programa que pôde ser montado o espetáculo Rapeize, último trabalho de Robson Graia, do qual Pedro teve a oportunidade de participar.
O ator chegou a cogitar escolher outras profissões antes de ingressar na universidade, mas com apoio de sua mãe, rendeu-se aos encantos das artes cênicas. Em sua trajetória acadêmica na UnB teve contato com os bastidores das peças, fez disciplinas como iluminação e cenografia e, durante seu processo de conhecimento, percebeu a dança e a expressão corporal como sua principal linguagem.
Ainda na graduação, o artista circularia o país com a peça dirigida por Hugo Rodas, Adubo: ou a sutil arte de escoar pelo ralo, onde pôde descobrir mais uma faceta sobre si próprio: o produtor. Em meio a tantas novidades, Pedro formou-se bacharel em Artes Cênicas com experiências diversas – à frente e atrás dos palcos – e hoje, com mais de 20 anos de carreira, conta com inúmeros espetáculos no currículo.
“Viver da arte cênica é realmente um desafio, mas, muitas vezes, a vontade de realizar espetáculos é maior”. Assim Pedro justifica sua resiliência em dedicar-se, depois de formado, às artes circenses. Em 2005, uniu-se a profissionais de distintas áreas artísticas como bailarinos, atores, músicos e artistas circenses para criar a Trupe de Argonautas, grupo cuja permanência, com diferentes composições, serve como prova de seu sucesso.
Em seu início, o coletivo enfrentou dificuldades financeiras para encontrar até mesmo um espaço para ensaiar, momento essencial nas artes do corpo para propiciar a apropriação do lugar em que se vai apresentar. Muitos dos ensaios chegaram a ser feitos no quintal de uma das integrantes, pois não havia espaços públicos disponíveis.
“O grupo à época trabalhava com aéreos circenses, e tínhamos uma limitação espacial muito grande. Ensaiávamos no Setor Leste, mas não tinha privacidade para criar, pois era um ginásio em que dividíamos espaço com aulas de circo e ginástica. Então fomos para a Octogonal, um espaço que era da Associação de Ginástica Artística e tinha um bom espaço, mas por uma demanda econômica os horários eram trocados para mais tarde. A gente passou um ano ensaiando no quintal da Súlian Pincivalli, era um espetáculo de rua, e os ensaios foram realizados no frio, no vento, no calor…”

Criado em 1991, o FAC, é o principal instrumento de fomento às atividades artísticas e culturais da Secretaria de Cultura do DF, oferecendo apoio financeiro a fundo perdido e selecionando seus projetos por meio de editais. O investimento em cultura por meio de editais é uma tentativa de facilitar o acesso ao financiamento público com vistas a diminuir as desigualdades produzidas pela Lei Rouanet, que deixa nas mãos dos setores de marketing das empresas a escolha de projetos culturais.
Na tentativa de reforçar o papel democratizante do FAC, o conselho que o gere (CAFAC) conta ainda com representantes da sociedade civil, indicados pelo Conselho de Cultura do Distrito Federal. Este, por sua vez, é descentralizado por meio dos Conselhos Regionais de Cultura (CRC) e pelos Comitês Macrorregionais de Cultura (CMC).
O FAC tornou-se, sem dúvidas, um dos incentivos mais comuns para artistas populares, e é através destes editais que é possível ampliar e democratizar o acesso ao público, levando espetáculos para as regiões administrativas.
O sucesso em um edital do FAC solucionaria o problema de espaço da Trupe de Argonautas. O ano era 2012. Aquele certame foi o primeiro a ter pontuação por localidade, beneficiando a realização de espetáculos que contemplassem as regiões administrativas fora do Plano Piloto. A Vila Telebrasília, ao lado de Varjão, era uma das regiões contempladas pelo projeto vencedor apresentado pelo grupo. Ao procurar o local exato na Vila para produzir o espetáculo, Pedro Martins vislumbrou voos mais altos.
“Chegamos na Vila Telebrasília, e pensamos: ‘vamos apresentar na escola’ – mas não tinha escola; ‘vamos para uma quadra’ – mas não tinha quadra. Então pensamos em alugar uma casa, pois o espetáculo era sobre samba, uma pegada jovem de festa, era um jogo de festa. E rodando a Vila, encontrei um fliperama abandonado com uma placa de ‘aluga-se’. O dono mostrou outros espaços e tinha um em específico que tinha 150 metros divididos, com tapume do chão ao teto. Era um depósito de madeira velha e entulho (…). Então eu e minha namorada, que hoje é minha esposa, fizemos uma planta e nos interessamos. Tinha equipamentos da Trupe de Argonautas, os aparelhos de iluminação e de som adquiridos durante os anos em apresentações. Então vimos que com duas apresentações teríamos dois meses de aluguel: ‘vamos ver no que dá’! Da minha cabeça e do cheque especial, eu criei o Espaço Pé DireitO”.
Assim surgiu o centro cultural localizado na Vila Telebrasília, que é composto por dois espaços multiuso e que tem por objetivo oferecer ao grande público aulas e apresentações de circo, teatro e dança. O espaço agregou à sua agenda apresentações de outros grupos itinerantes que teriam a Vila Telebrasília como destino, contribuindo para a promoção de cultura nesta região quase esquecida do DF, mas que integra seu Plano Piloto e constitui mais um exemplo de resistência e luta dos pioneiros de Brasília.
O sonho de Pedro Martins, contudo, ainda vai além. Ciente do papel da arte como atividade que humaniza o ser, desfetichiza o produto do trabalho e amplia a consciência para a possibilidade de uma vida sem exploração, Pedro sempre enxergou no projeto uma possibilidade de contribuir coletivamente com a emancipação dos trabalhadores da Vila Telebrasília de uma existência dura, objetificada pelas péssimas condições de trabalho e pelas faltas de oportunidades. Elaborou, então, o projeto intitulado “A Vila Telebrasília começa com o Pé Direito”, com o objetivo de transformar a Vila no equivalente de uma rua das farmácias para as artes.
“Minha intenção era, primeiro, formar a base e botá-la em contato com os produtores que precisam do serviço. Bilheteiro, operador de luz, operador de som, brigadista, serviço de faxina especializada… E, depois, fazer as pessoas participarem do espaço da arte. A arte é um lugar que cria vazão no imaginário para a mudança de vida, ensina sobre resiliência, e é um exercício imersivo de empatia. E isso importa, porque a docilização dos corpos é um problema. Se nós não aprendermos que temos que bater boca, que temos que gritar, que temos que lutar, vamos desperdiçar o potencial humano de cada um. O contato com a arte propicia isso (…). A arte gera empoderamento. A costureira que trabalha pro teatro vira, tecnicamente, uma costureira melhor, porque o prazo é curto, o orçamento continua apertado, mas o tesão é gigante: ela vai ver o trabalho dela. E ele não está na festa da madame pra qual ela não foi convidada. Tá em uma festa para a qual ela recebeu o convite. Ela vai se empoderar naquilo”
Pedro Martins apresentou seu projeto para o Itaú Cultural, em busca de financiamento, mas foi rejeitado. O artista, porém, segue construindo a luta política no campo cultural do DF: tem, afinal, plena consciência de que fazer arte é também fazer política.

Atuação na política cultural do DF
Os desafios na jornada de construção do Espaço Pé Direito – como podem imaginar todos os trabalhadores da cultura – foram se agravando com a involução política no DF e no Brasil, que tem caminhado do ruim para o pior.
Se o centro cultural pôde vencer o edital de manutenção de espaços à época do governo de Agnelo Queiroz, sua viabilidade sofreria com os sucessivos golpes direcionados ao setor: o uso do FAC para pagar salários atrasados de outras pastas, na gestão de Rodrigo Rollemberg (PSB/DF); o represamento das verbas do FAC na gestão do governador Ibaneis Rocha (MDB/DF), sobretudo durante o exercício do antigo secretário de Cultura e Economia Criativa do DF, Adão Cândido; e, mais recentemente, a privatização da CEB e o evidente aumento das tarifas que se seguiu.
Aqueles familiarizados com o meio artístico e cultural sabem que não resta outra opção, diante das dificuldades impostas a cada governo ao fomento cultural e à prestação de contas, senão o engajamento nos instrumentos de luta política, com articulação em torno dos conselhos de cultura e dos sindicatos das classes trabalhadoras.
Foi esse o caminho seguido por Pedro, que há alguns anos atua junto aos fóruns de teatro, de circo e de cultura; une esforços para reerguer o Sindicato dos Artistas e Técnicos de Espetáculos e Diversões (SATED/DF) – que tem sofrido ataques de sua própria direção; e é atualmente suplente do Conselho Regional de Cultura do Plano Piloto.
Não por acaso, o artista – que foi também bolsista nacional de curso de gestão do Senai, ainda no governo Dilma – tem na ponta da língua as respostas para a importância do investimento público em cultura, mesmo quando a questão é vista de uma perspectiva estritamente econômica.
“Política pública no setor cultural gera indicadores que nenhum outro setor é capaz de gerar. Já está provado que para cada R$ 1,00 que você investe em cultura, você devolve R$ 1,40 para a economia local. Está provado que você diminui gasto com segurança pública. Está provado que representa um investimento em educação e, inclusive, constitui uma parceria muito forte com esse setor, sobretudo pelo papel que exerce nos contraturnos. Está provado que pessoas que fazem arte, circo, dança e capoeira têm menos problemas de saúde. Investir em cultura não é investir no bolso do artista: vai do cara que vende cachorro-quente, para a mulher que produz figurino de alta qualidade, passando pelo dono da gráfica que faz o panfleto, por quem entrega o panfleto, pelo mercadinho do bairro (…). A economia da cultura movimenta várias economias”.
Foi, portanto, neste espaço transformador fincado entre arte e política que Pedro Martins reconheceu um sentido para a vida e para sua militância em Brasília. Munido do significado profundo que esses dois termos carregam para a revolução da existência humana, o artista encerrou nossa conversa com um diagnóstico realista e esperançoso sobre a necessidade da luta da classe artística no DF. Tarefa essa que envolve, por óbvio, a reconstrução do sindicato e o engajamento da juventude na luta pela dignidade da arte e dos trabalhadores da cultura.
“É importante falar que existe, sim, a luta por uma categoria. Categoria que está indignada com a direção do sindicato, que nós sentimos que não nos representa. E está na hora de a juventude assumir esse papel (…). Enquanto a juventude não entender que lutas coletivas são mais importantes que lutas individuais; que lutas coletivas demoram, mas são duradouras; que lutas coletivas não são só para você, mas são para as pessoas que você ama e para as que você odeia também; enquanto isso não acontecer, nós não vamos exercer nossa civilidade, nossa cidadania. No Sated/DF [Sindicato dos Artistas e Técnicos em Espetáculos de Diversões do Distrito Federal] nós temos um desafio muito grande de convencimento de que essa luta não é solitária, e não pode ser. E de que é uma luta: não é um desfile, não é uma postagem. É uma luta real”.
[…] em cultura. Ela gera efeitos muito além do que podemos apreciar à primeira vista. Em texto anterior, a Revista O Ipê ouviu especialista que já indicava que a cada R$1,00 investido em cultura, o […]
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