Setores liberais da sociedade e até grupos de esquerda têm contemporizado (e incentivado) grupos, atitudes e posições nazistas diante da invasão russa à Ucrânia. Seria o nazifascismo o novo normal?
por Raul Floriano
Queremos acreditar que o senso comum da humanidade siga considerando o fascismo e o nazismo como ideologias radicalmente desprezíveis e desumanas, cujos resquícios devem ser forçados ao esgoto da história. Contudo, diversos exemplos recentes mostram que grupos, atitudes e posições neofascistas e neonazistas têm sido crescentemente aceitos ou relativizados, inclusive por setores da esquerda.
O recente conflito entre Rússia e Ucrânia fez surgir mais um exemplo preocupante dessa relativização, trazendo à tona o que, para alguns, ainda parece ser uma escolha muito difícil. Diante das crescentes evidências de que o governo ucraniano adota estruturas neofascistas e elementos neonazistas em suas instituições oficiais, setores liberais da sociedade insistem em romantizar a resistência oferecida por esses grupos e por seus chefes à invasão russa.
Pior, munidos de indignação seletiva com os horrores trazidos pelas guerras, supostos bastiões da civilização ocidental tiveram por bem adotar e celebrar campanhas contra todo o povo russo, incluindo o “cancelamento” de sua cultura e de sua herança histórica. Instantaneamente popularizada como irrefletida sinalização de virtude, a estratégia de demonizar o povo russo viralizou também em solo brasileiro, embora mais pareça saída do infame Ministério do Reich para Ilustração Pública e Propaganda.
O neonazismo na Ucrânia
No caso da Ucrânia, a desculpa mais bem aceita para normalizar o nazismo é dizer que os setores neonazistas seriam irrelevantes na política interna do país, carentes de representação institucional ou capilaridade social. Assim, seriam apenas uma espécie de mal menor da guerra, detalhe incapaz de macular a resistência do mito-presidente Volodymyr Zelensky. Trata-se de um presidente que não hesitou em dignificar o comandante de um batalhão neonazista com o título de Herói Nacional. Mas, ainda assim, um mito.
O ato simbólico da condecoração seria capaz, por si mesmo, de expor a incorreção do argumento de que a ideologia nazifascista na Ucrânia não possui maior consequência. Mas não é só. Em 2015, o parlamento aprovou quatro “leis de descomunização”, que elevam a heróis também a Organização de Nacionalistas Ucranianos (OUN) e o Exército da Insurgência Ucraniana (UPA) – instituições que colaboraram com os nazistas durante a Segunda Guerra, assassinando 35 mil judeus e entre 70 e 100 mil poloneses – além de proibirem a negação de tal heroísmo.
O Instituto Ucraniano de Memória Nacional, entidade governamental mantida com dinheiro público, promove oficialmente as duas organizações, mantendo exibições oficiais em sua homenagem. Atos e festivais em celebração a nazistas são comuns, e contam com a conivência das polícias locais. Em 2019, o prefeito de Lviv ajudou a organizar marcha de centenas de pessoas, que realizaram saudações à divisão ucraniana da polícia nazista (14ª Divisão da SS da Galícia).
O mesmo prefeito e sua esposa são donos do Canal 24, onde, mais recentemente, um apresentador de TV defendeu o assassinato de crianças russas, congratulando o executor da solução final, o nazista Adolf Eichman, enquanto sua foto figurava no pano de fundo. E não é preciso procurar figuras locais para perceber o bom relacionamento entre figuras de poder e o nazismo: em 2019, o antigo primeiro-ministro do presidente Zelensky, Oleksyi Honsharuk, compareceu a show da banda antissemita Sokyra Peruna, em evento organizado pelo grupo neonazista C14.
O neonazismo no poder
As ligações de grupos neofascistas e neonazistas com o poder oficial, porém, não são meramente anedóticas. O Setor Direito, surgido da junção de quatro forças ultranacionalistas em novembro de 2014, é uma organização antissemita que já caracterizou o Massacre de Odessa como “brilhante momento da nossa história nacional” e cometeu crimes humanitários ao bloquear ajuda alimentar ao leste ucraniano.
A organização tinha como líder Dmytro Yarosh, homem com trânsito oficial junto ao prefeito de Kiev, Vitaly Klitschko, outro candidato a herói da mídia ocidental. A punição para esse líder nazista ucraniano? O convite para compor o Conselho de Segurança e Defesa da Ucrânia e, em novembro de 2021, sua indicação como assessor do Comandante-em-Chefe das Forças Armadas do país.
Outra organização neonazista da Ucrânia é o partido Svoboda (Liberdade), herdeiro do Partido Nacional-Socialista da Ucrânia, cujo nome dispensa explicações. O partido, que continua legalizado mesmo após a mais recente proibição de diversos partidos oposicionistas, contou com nada menos que cinco ministérios no Governo Provisório, composto depois da deposição do presidente Yanukovich, em 2014.
O cofundador do literal partido nazista da Ucrânia, apesar de garantir nunca ter mudado seus valores, trocou de partido, é deputado e foi presidente do Parlamento ucraniano e do poderoso Conselho de Segurança e Defesa.
São esses os grupos marginais sem representação política e afastados do poder? Vai faltar pano para quem insistir nessa afirmação.
Milícias nazistas: O Batalhão Azov
Além do fato de os grupos neonazistas estarem encarniçadamente ligados ao poder central, o argumento de que seriam irrelevantes por não possuírem representação parlamentar significativa é falacioso por outro motivo. A representatividade parlamentar não pode servir de critério para medir a influência de grupos políticos fascistas, cuja ideologia e estratégia consistem em criar esferas de poder fora do Estado, legitimando o uso de violência organizada por grupos paramilitares. Seu engajamento político consiste justamente na “substituição ‘técnica’ das instituições ucranianas supostamente ausentes ou falhas”.
Ainda que esses grupos agissem meramente com chancela do poder Estatal, e não estivessem legitimados no seio do poder central, o caráter fascista da Ucrânia já estaria caracterizado. O maior exemplo nesse front é o Batalhão Azov, cujo heroísmo é reconhecido pelo governo ucraniano e cujo papel na guerra tem sido desesperadamente minimizado pela mídia ocidental. O Batalhão Azov foi fundado em 2014 por Andriy Biletksy, antigo deputado ucraniano que interpreta a missão de sua nação como a liderança “das raças brancas do mundo em uma última cruzada contra os subhumanos [Untermenschen] liderados por judeus”. Diante de uma afirmação como essa, não nos ocuparemos em gastar tinta acerca do caráter comprovadamente nazista do batalhão, fato reconhecido pelo próprio governo norte-americano. Foquemos no caráter de sua atuação anterior à guerra.
Segundo Adrien Nonjon, especialista na extrema-direita da Ucrânia, o Azov aproveitou a instabilidade de 2014 para colocar-se no “coração da política ucraniana”, por meio de três níveis de representação: i) institucional, por meio do partido Corpo Nacional, legalizado no país; ii) miliciano, por meio da Milícia Nacional, incorporada oficialmente à Guarda Nacional; iii) ideológico, em favor da propaganda internacional de um nacionalismo ucraniano de extrema-direita, baseado principalmente no conceito de “naciocracia” de Mykola Stsiborskyi (1897-1941).
Vale notar que os laços oficiais com o poder, no caso do Azov, tampouco são desprezíveis: o grupo recebeu apoio do antigo Ministro do Interior, Arsen Avakov; pôde contar com um dos líderes do batalhão, Vadym Troyan, na posição de vice-Ministro do Interior; e recebe pesado financiamento dos bilionários e governadores Serhiy Taruta e Ihor Kolomoisky. Ihor Kolomoisky que, por sinal, foi também o maior apoiador (e não só) da campanha de Zelensky, bem como é o grande financiador de diversos outros batalhões extremistas, como Dnipro 1, Dnipro 2, Donbas e Aidar. Batalhão Aidar que, por sinal, teve seu antigo comandante, Maksym Marchenko, indicado a governador de Odessa, em 1º de março último… Enfim, tampouco é um grupo alijado das estruturas de poder ucranianas.
Mas aqui interessa e impressiona sua atuação paraestatal, tipicamente miliciana: em 2018, fizeram refém a Câmara dos Vereadores da cidade de Cherkatsy até que fosse aprovado o orçamento que desejavam; em 2019 e 2020, conseguiram autorização estatal para exercer papel regulador na eleições gerais e locais da Ucrânia; ao longo dos últimos anos, espancaram diversos deputados da oposição, realizando outras diversas práticas intimidatórias contra políticos; além de seus já habituais crimes de ódio contra a população LGBTQIA+ e o povo romani.
A atuação política por meio da intimidação violenta com vistas a obter a limpeza étnica de um país não deveria merecer outro nome: é nazismo. E o brasileiro deveria saber bem que não se pode desprezar o horror de uma atuação miliciana institucionalizada como se fosse um mal menor. Muito menos quando falamos de um partido nazista paramilitar que ultrapassa os 10.000 membros, é pesadamente armado e amplamente financiado por potências ocidentais, sem nenhum controle ou rastreio do envio de armamentos de ponta e de fácil utilização.
Tendências fascistas devem ser combatidas com firmeza e agilidade. Sabe-se que o governo protofascista de Bolsonaro funcionou, nos últimos anos, como berço para a normalização de gestos e atuações abertamente racistas e autoritárias. E embora não falte condenações virtuais e simbólicas às ocorrências pátrias de inspiração nazifascista, o fato de que isso não se observe na arena internacional demonstra que, ainda hoje, não se pode deixar de repisar o óbvio: ainda há entre nós aqueles que não veem problema algum em sentar-se à mesa com nove nazistas, pronto a tornar-se o décimo, cheio de desculpas e vejabens.