16 referências na música “This is not America”, do rapper Residente, como expressão de uma verdadeira identidade americana.
por Pedro Dinis
No dia 18 de março de 2022 o músico porto-riquenho Residente lançou a música This is not America, em parceria com o duo franco-cubano Ibeyi. A obra é uma rememoração crítica, visceral e clara da história latino-americana e não relega às entrelinhas a realidade violenta que os povos ao sul do continente viveram e continuam diuturnamente experimentando.
A música que mistura rap e rudimentos típicos da América Latina, como cumbia, serve como um contraponto – mas também como complemento – à música de Childish Gambino, This is America. A partir da crítica da crítica posta por Residente, temos uma série de referências históricas e culturais, visuais e textuais, que servem de instrumentos para uma disputa por uma verdadeira identidade americana, não restrita ao norte do continente.
Com isso em mente, façamos uma leitura do vídeo. Não com a intenção de esgotar todas as referências estéticas, líricas, melódicas e históricas que a obra pode nos proporcionar, mas sim para destrinchar – a partir de leituras anteriores de João Carvalho e de Luís Fernando Tófoli – algumas das referências mais evidentes, debatendo com o resgate histórico e sua luta anticolonial.
Referências históricas e visuais
Em 1823, nos Estados Unidos, foi criada a Doutrina Monroe, com objetivo inicial de defender as nações americanas, recém tornadas independentes, contra ações colonialistas europeias. Essa doutrina, que tinha como slogan “uma América para os americanos”, aliada ao Destino Manifesto – processo político-ideológico do século XIX, que definia como uma missão divina a expansão norte-americana para o Oeste – serviram de base para os primeiros movimentos imperialistas daquele país sobre o restante do continente. Iniciava-se ali processo contínuo de dominação que envolveria golpes de estado, guerras, boicotes econômicos e todos os elementos opressivos possíveis de uma nação sobre outra.
Mas por qual motivo é importante saber disso? As referências do clipe destrinchadas mais abaixo representam, em sua maioria, intervenções norte-americanas no restante do continente americano. Intervenções que geram fome, pobreza, violência e resistência. São as cicatrizes – mas também feridas ainda abertas – que Residente registra de forma tão bela nesta canção.
1. A Logo for America, obra de Alfredo Jaar em plena Times Square
Na abertura do clipe já nos deparamos com a primeira referência histórica. A primeira imagem que o clipe traz é uma referência à obra de Alfredo Jaar intitulada A Logo for America, que foi exposta em 1987 em plena Times Square. A obra do artista chileno era uma animação de quarenta e dois segundos, que questionava a usurpação da identidade de todo um continente americano por um só povo. À época, a intervenção artística de Jaar causou muita controvérsia, pois além da frase “isto não é a América”, Victor Jaar ainda expressava “esta não é a bandeira da América”.

Foto: Jane Dickson/Public Art Fund

Foto: reprodução/YouTube
2. A ação direta de “Lolita” Lebron Sotomayor
Não por acaso o porto riquenho Residente nos mostra logo nos segundos iniciais do clipe uma clara referência à ativista “Lolita” Lebron Sotomayor. A conterrânea de Residente realizou uma ação direta em 1954 disparando tiros em frente ao Congresso dos Estados Unidos da América, como forma de protesto na luta pela libertação de Porto Rico. Naquele dia, Lolita foi presa juntamente com outros ativistas, e só seria libertada 25 anos depois, por um indulto de Jimmy Carter, em 1979.

Foto: Associated Press/Wikimedia Commons

Foto: reprodução/YouTube
3. Separação familiar de imigrantes nos campos de concentração dos EUA
Essa referência usa como base estética uma foto tirada na Argentina em 2013, durante uma ocupação por moradia, mas nos remete, principalmente, às centenas de casos de separação familiar nos campos de concentração para imigrantes nos EUA. Só em 2020, 545 crianças foram separadas dos pais e não conseguiram encontrá-los novamente.

Foto: reprodução/YouTube
4. Mulheres do Exército Zapatista de Libertação Nacional
No marco de um 1min34s da música, há uma referência às mulheres do EZLN. Este movimento, composto majoritariamente pela comunidade indígena mexicana, tem como suas principais pautas a reforma agrária e a luta anti-imperialista. Há uma massiva adesão feminina na resistência zapatista.

Foto: reprodução

Foto: reprodução/YouTube
5. Processo migratório e as mutilações por La Bestia
Em uma das cenas mais fortes do clipe, Residente faz referência ao processo ilegal de migração, principalmente de mexicanos, por meio de um trem de mercadoria em uma linha férrea que liga o México aos EUA. Contudo, trata-se de uma forma rápida e muito perigosa de migração. O trem que faz este caminho é conhecido por La Bestia, devido aos inúmeros casos de acidentes no percurso que acabam mutilando os imigrantes que se arriscam nesta viagem.


Foto: reprodução/YouTube
6. Pai e filha encontrados mortos na tentativa de migração
Uma cena que pode não saltar aos olhos de imediato, mas carrega uma história extremamente dramática e recorrente, é a que nos aparece aos 01:48 da música, aludindo a Oscar Ramirez e sua filha. Esta referência retrata um caso de 2019, quando os salvadorenhos foram encontrados mortos após tentativa de travessia de um ponto no México para o estado do Texas.


Foto: reprodução/YouTube
7. Os falsos positivos na Colômbia
Um fato histórico muito bem apresentado por Residente, em This is not America, é o caso dos falsos positivos colombianos. Trata-se da brutal execução de 6.402 pessoas pelo Exército colombiano, entre 2002 e 2008, com o objetivo de aumentar a estatística de baixas vinculadas às Farc.
A ordem para esses assassinatos tem vínculo com os programas de incentivo e bonificação para oficiais que conseguissem realizar assassinatos de opositores ligados aos paramilitares. Com essa informação em mente, é mais fácil compreender a mensagem transmitida pelo sorriso no rosto dos soldados aqui, não é?

Foto: Colombia Reports

Foto: reprodução/YouTube
8. Jair Bolsonaro, picanha de R$ 1.800,00 e a criança Yanomami
Jair Messias Bolsonaro foi o único chefe de Estado a ser representado de alguma forma. E aqui temos uma referência ao episódio em que o presidente foi registrado comendo uma picanha cujo quilo era avaliado em 1.800 reais.
Ao mesmo tempo, a cena mostra uma criança da etnia yanomami ao fundo, esquecida pelo Estado. É a representação vívida das diversas ofensivas dos garimpeiros, em especial nas terras yanomamis, bem como a calamitosa ofensiva do setor agropecuarista nas terras de preservação indígena.


9. Assassinato do compositor Victor Jara, durante a ditadura chilena
Nesse ponto, sem dúvidas, temos uma das cenas mais chocantes do trabalho de Residente. Vê-se uma representação do assassinato de Victor Jara, músico, professor, militante comunista e compositor símbolo da Nueva Canción Chilena – expressão artística e social representativa no governo Allende, que tinha como pauta a recuperação da música folclórica hispano-americana. Jara foi executado pelas forças oficiais no Estádio Chile. A cena, por mais chocante que possa ser, não representou completamente a brutal realidade do assassinato de Victor Jara. No clipe, ele aparece sendo executado com um tiro na cabeça, quando, na verdade, o corpo do músico comunista foi encontrado com 44 perfurações de bala.
Esse padrão de brutalidade foi comum no período da ditadura Pinochet. O Estádio Chile, hoje chamado de Estádio Víctor Jara, foi um espaço para torturas, assassinatos e depósito de corpos dos que se opunham ao regime. Contudo, no clipe, Residente incorre em um erro histórico aliado à licença poética, ao vincular o assassinato de Victor Jara a outro estádio, o Estádio Nacional do Chile, que na verdade foi um outro palco – e principal – do horror chileno. Estima-se que cerca de 400 pessoas foram mortas no Estádio Nacional do Chile, e que outras 20.000 ali estiveram em regime de campo de concentração.

Foto: reprodução/Fundación Victor Jara

Foto: reprodução/YouTube
10. Os drones norte americanos como maquinário de guerra
Desde a administração Obama – recorde em atentados com bombas no mundo, chegando a realizar mais de 26 mil ataques durante os 8 anos de gestão – os EUA têm se sofisticado nos métodos de monitoramento e ataque contra imigrantes e povos de fora das fronteiras do território norte-americano. O próprio Barack Obama já confirmou, em entrevista, que cerca de 116 civis foram mortos em operações com uso de drones, direcionados a países como Iêmen e Somália. Não bastasse isso, a fronteira EUA-México é monitorada por drones, ao menos desde de 2014.
Portanto, aqui Residente retrata a constante ameaça galgada pelo sofisticado maquinário da indústria bélica norte-americana nas suas empreitadas militares mundo afora, como na forma de patrulhamento das suas fronteiras.

Foto: Ghost Robotics/DHS

Foto: reprodução/YouTube
11. Manifestação chilena contra a ditadura de Pinochet
Residente também faz referência a uma foto tirada durante uma manifestação no Chile em 2016. Na ocasião, uma mulher encara um dos policiais da tropa de choque chilena, durante uma manifestação realizada no dia 11 de setembro daquele ano, em protesto pelos 43 anos da instauração da ditadura militar no país.

Foto: Carlos Vera/Reuters

Foto: reprodução/YouTube
12. José Victor Salazar Balza, estudante pegando fogo em protesto na Venezuela
Residente faz alusão a uma foto do estudante José Balza, em que Ronaldo Schemidt capturou, em meio aos protestos na Venezuela em 2018. A foto foi registrada na onda de protestos da crise social que vivia a Venezuela naquele ano.

Foto: Ronaldo Schemidt

Foto: reprodução/YouTube
13. Referência ao assassinato do líder estudantil, Lucas Villa, na Colombia
Em 2021, na Colômbia, ao menos 48 pessoas morreram durante manifestações e greve geral realizada contra a reforma tributária apresentada pelo governo de Iván Duque. Um dos manifestantes mortos foi o estudante Lucas Villa Vasquez, que foi atingido por 8 disparos de arma de fogo. O caso de Lucas Villa tornou-se emblemático, por ser um dos líderes das manifestações contra as medidas de Iván Duque.

Foto: Telesur

Foto: reprodução/YouTube
Referências na letra da canção
Não é só de referências estéticas que se faz uma boa obra audiovisual. Na música de Residente, há várias referências históricas presentes também na letra da canção. Portanto, vamos analisar 3 das mais evidentes:
14. Referência a Tupac Amarú
Residente presta homenagem a Tupac Amaru II – líder da maior rebelião anticolonial do século XVIII – por meio de imagens e letras. Por meio das imagens, ele relembra a forma brutal de seu assassinato por esquartejamento. Na letra da canção, explicita-se a referência ao líder anticolonial por meio da menção ao rapper norte americano, 2Pac, que assumiu esse nome em sua homenagem: “2pac se llama 2pac por Túpac Amaru del Perú”.


Foto: reprodução/YouTube
15. Referência ao calendário maia e ao povo pré-colombiano
Outra referência feita é em relação aos povos originários. Residente ressalta que mesmo após as mais violentas formas de genocídio perpetrada contra eles, parte das estruturas, ferramentas e conhecimentos foram apropriadas pelo colonizador, como é o caso do calendário maia:
“A estos canallas / Se les olvidó que el calendario que usan se lo inventaron los Mayas / Con La Valdivia Precolombina / Desde hace tiempo, ah / Este continente camina/ …cuando ustedes llegaron, ya estaban las huellas de nuestros zapatos”
16. Cinco presidentes em onze dias
Por fim, Residente não deixa de mencionar o sombrio período da crise econômica argentina, no ano de 2001. Residente canta: “Cinco presidentes en once días”, em alusão aos onze dias em que uma crise econômica e política fez com que a Argentina tivesse uma sucessiva renúncia de mandatários, manifestações e ao menos 38 pessoas mortas. O estopim para a crise foi a decisão do governo de Fernando de La Rúa de confiscar o depósito bancário dos cidadãos – em plena véspera de Natal – para ajudar a pagar a dívida externa.
Contudo a medida desaguou apenas em mais recessão, desemprego e inflação, culminando em uma onda de protestos e saques por todo o país. Como consequência, o presidente Fernando de La Rúa decretou Estado de Sítio no dia 19 de dezembro de 2001, o que não impediu a presença da população nas ruas. No dia seguinte, 20 de dezembro, Fernando de La Rúa renunciou. Depois dele, a Argentina testemunhou uma avalanche de trocas de mandatários nos 11 dias seguintes.
Então, o que é a América?
Quando Residente cita nominalmente Childish Gambino, podemos ver por uma perspectiva meramente competitiva ou de desafio – tipicamente no rap conhecido como diss. Contudo, seria superficial apartar a luta de resistência latino-americana, que também é imbuída de muito racismo, da luta antirracista nos EUA. Faz-se, pois, necessário ver as lutas de resistência dos povos oprimidos de todo o continente como complementares, sem prejuízo de uma visão crítica de suas particularidades.
Ao estender a bandeira da luta anticolonial, faz-se uma crítica da crítica, pois explicita-se a predominância de uma identidade americana – a norte-americana – sobre outras, o que reforça sua posição hegemônica no mundo. Da mesma maneira, não é raro que obras críticas norte-americanas, como de diretores como Spike Lee, censurem as estruturas racializadas norte-americanas, mas ao mesmo passo reforcem a postura imperialista de dominação dos EUA.
Exemplo disso é o caso do filme Destacamento Blood (Spike Lee, 2020), que se passa na Guerra do Vietnã, abordando a racialização dos soldados negros, que é justamente debatida, mas ignora o caráter imperialista da guerra que levou a cabo a vida de cerca de 3,8 milhões de vietnamitas: esse caráter central do conflito não figura nem como pano de fundo do filme. Portanto, ao clamar que isso, sim, é a América, não temos apenas a defesa e homenagem daqueles que, com o sangue, forjaram esse continente.
Temos, ainda, um chamamento para união dos oprimidos contra seus opressores. Temos a representação de um continente que foi erguido sobre um gigantesco cemitério indígena. A representação da luta anticolonial, antirracista, feminista e da população LGBT. A luta dos panteras negras nos Estados Unidos, mas também a luta do EZLN no México. Assim, Residente consegue expressar nessa canção, com maestria, como a luta de libertação e a luta por uma identidade americana estende-se da Terra do Fogo até o Canadá.