Ucrânia: entre o imperialismo ocidental e o centralismo russo

As narrativas dominantes do chamado Ocidente e da Rússia trazem inconsistências: de um lado, a defesa da democracia liberal pela violência, de outro, o combate à autodeterminação dos povos

por Tiago Alcântara

Como em toda guerra, a verdade tem sido uma das primeiras vítimas nas análises mais influentes da invasão das tropas russas à Ucrânia. Assistimos ao assassinato do bom senso junto das trágicas mortes de soldados e civis dos dois lados – há civis pró-russos nas repúblicas separatistas da região do Donbass desde 2014. Para superar a opacidade dos meios de comunicação tradicionais, redes sociais e mesmo da academia, não é fértil buscarmos “verdade” no sentido transcendental. É mais produtivo procurarmos entender as determinações econômicas e geopolíticas das versões, e assim construirmos condições para uma análise que não seja apenas afirmação de juízos de valor. 

O discurso vigente no chamado Ocidente

Comecemos pelo mundo das ideias e não pela materialidade, pois é assim que a realidade social aparece, ou seja, como um multiverso de impressões, ideias e valores. Os oleodutos de gás estão enterrados, as operações financeiras entre países da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) ou entre China e Rússia permanecem ocultas nas fibras óticas dos bancos e empresas. O complexo das relações econômicas é na maior parte do tempo opaco, invisível, e sua parte aparente é, geralmente, mistificadora (o salário, por exemplo, oculta a mais-valia). 

Chegam-nos as imagens e textos sobre a guerra filtrados por meios de comunicação hegemônicos e redes sociais, universos hierarquizados por centros de poder reguladores das notícias e algoritmos. Uma possibilidade de trincar este mundo aparente é a demonstração da incoerência interna do discurso pró-Otan. Podemos tentar fazer o mesmo com o discurso de Putin sobre a identidade nacional ucraniana e a proposta federalista leninista. 

Peguemos a maneira com que a imprensa hegemônica norte-americana/europeia analisa as circunstâncias da derrubada do governo pró-russo na Ucrânia, em 2014. Para defender o que seriam os valores democráticos na sua versão liberal (típica do status quo norte-americano/europeu) ou mesmo na linha democrata-radical (própria da esquerda reformista norte-americana e europeia), a imprensa hegemônica precisa legitimar a destituição daquele governo pela força, ou seja, por uma revolução popular, que é, em qualquer de suas versões, a supressão radical do direito e das instituições políticas vigentes. 

Uma revolução não pode ser um ato essencialmente democrático na sua forma, pois precisa fundar um novo direito e não há como realizar algo assim sem coerção. Mesmo que algumas revoluções (no sentido de tomada do poder) possam ser democráticas no seu conteúdo (Revolução Francesa e Revolução Soviética, por exemplo), ou seja, defendam os interesses objetivos da maioria, a prática revolucionária não espera contar com a maioria aritmética antes de tomar cada medida de exceção, como a expropriação da propriedade dos ricos ou o fechamento de jornais contrarrevolucionários. 

Então, o discurso da imprensa norte-americana e europeia estabelece para si mesmo uma contradição sintomática, vira um discurso “revolucionário” no qual a democracia liberal é vista como incapaz de defender a si mesma e precisa da violência popular (por definição não democrática, pelo menos no sentido de que não respeita as instituições políticas vigentes e os meios parlamentares) para ser reestabelecida. É o status quo defendendo atitudes revolucionárias, um retorno imaginário ao seu berço jacobino como arma ideológica nas batalhas do presente, pois a revolução nesta proposta hipócrita é receitada apenas para os países inimigos. 

Neste discurso, após a introdução de praxe, focada em dizer que um presidente mandou matar ou prender adversários (o que, observe-se, lhe tiraria a legitimidade e justificaria o impeachment, mas não o golpe, como defende a mídia dita ocidental), passa-se a afirmar que a democracia na Ucrânia, durante o governo pró-russo, não foi capaz de se sustentar e seus instrumentos foram usados contra as instituições democráticas. Isso teria sido expresso no controle do Judiciário pelo Executivo via “reforma constitucional autocrática”, aproveitando maioria parlamentar momentânea e com o uso distorcido das prerrogativas do presidente. 

Esta concentração de poder no Executivo tem acontecido em várias partes do mundo, inclusive nos países centrais, como EUA, Inglaterra e França – em algumas conjunturas, principalmente nas guerras ou agudizações da luta de classes. Expressa os próprios limites e contradições da democracia liberal, que, apesar de ser fruto da pressão das classes trabalhadoras por liberdades (a burguesia preferiria uma eterna ditadura escancarada), está assentada na propriedade privada, e isso provoca a captura do Estado pelo capital. Então, surge o discurso do status quo e da esquerda democrática/reformista que deseja salvar a democracia dela mesma e, para isso, advoga a revolução na nação dos outros, nunca na própria, a qual é sempre concebida como o paradigma da democracia. 

Mas como não pode ser uma revolução socialista, já que para esse status quo e para a esquerda integrada à ordem só o capitalismo garantiria as liberdades democráticas, esta revolução no país dos outros precisa ser liberal. Isto acaba transformando a revolução em uma contrarrevolução, no sentido de procurar fortalecer as bases econômicas da economia de mercado, que são justamente os efetivos fundamentos da fragilidade congênita da democracia. 

Putin, Lênin e a autodeterminação dos povos

Vejamos as contradições do outro lado do conflito tematizando a coerência interna dos dois discursos de Putin, nos dias 21 e 24 de fevereiro de 2022, justificadores da invasão russa do território ucraniano. A crítica à expansão da Otan para o Leste, que passa pela denúncia dos acordos de Kiev com o Ocidente e das ações genocidas dos grupos neonazistas na região de Donbass, tem consistência do ponto de vista de quem defende a necessidade do equilíbrio entre as duas principais potências nucleares. Porém, a fala contra a autodeterminação das nações em geral, e da Ucrânia em particular, não tem qualquer consistência, é mera ideologia legitimadora do centralismo do governo russo relativo às aspirações das nações que participaram da URSS. É uma fala xenófoba. 

Neste tema, o discurso de Vladimir Putin tem Vladimir Lênin como o principal alvo, criando situação análoga à luta da cobra contra a águia. O líder bolchevique é acusado de ser o verdadeiro inventor da Ucrânia moderna (país que tem, diga-se de passagem, língua e tradições próprias) a partir de um conceito considerado irrealista de autodeterminação das nações. Lenin também é criticado por ter assinado a paz de Brest-Litovsk com a Alemanha (1918), ato considerado de suprema traição aos interesses da pátria, e de propor aquilo que seria o cúmulo do absurdo: uma estrutura federada para as várias repúblicas soviéticas. 

Na lógica do presidente russo, as propostas e ações leninistas seriam explicadas por uma convergência entre delírios esquerdistas e a disposição dos revolucionários de se manterem no poder a qualquer custo. Procura apresentar versão sobre o funcionamento do sistema federal na URSS e relativa à condução do tema na conjuntura do seu ocaso. Sustenta que o centralismo stalinista teria neutralizado as liberdades nacionais e negado a letra da Constituição soviética. As decisões da direção comunista no período da Glasnost teriam sido desastrosas por ampliarem a autonomia das repúblicas soviéticas, dando-lhes o direito à secessão. 

Na verdade, o princípio da autodeterminação das nações defendido enfaticamente por Lênin (posição que o singularizava no interior do movimento comunista internacional) tem se provado ao longo do tempo o único a produzir racionalidade e justiça em um mundo dominando por potências imperialistas, principalmente os Estado Unidos e países europeus. Esta noção, derivada do mais radical realismo, permitiu equacionar, após a Revolução Soviética, o relacionamento entre dezenas de nações localizadas no Império russo, que se estendia desde a Sibéria até o Mar Negro. Havia dezenas de línguas, diversas religiões e distintas formas de organização social, configurando diversidade impossível de ser representada em um Estado unitário, que tenderia a privilegiar os direitos e singularidades dos russos. 

A política bolchevique para as nacionalidades acabou se estabilizando em uma síntese entre incorporação institucional à URSS e grande apoio ao desenvolvimento das culturas específicas, tendo havido um verdadeiro desabrochar de várias nacionalidades. No caso da Ucrânia, Lenin, percebendo a grande especificidade da nação, a dimensão do território e as fortes aspirações autonomistas, esforçou-se ao máximo para deter o projeto dos bolcheviques ucranianos de anexar sua nação ao Estado soviético. 

Nem mesmo a ultraconcentração de poder no período stalinista foi capaz de sufocar totalmente as singularidades nacionais e as aspirações de autonomia, algo demonstrado, involuntariamente, pelo próprio discurso de Putin, que sublinha as várias aspirações nacionais existentes no momento do fim da União Soviética (as quais ele tenta desvalorizar como iniciativas utópicas de pequenos grupos nacionalistas). 

A cobertura midiática hegemônica da invasão russa da Ucrânia expressa no imaginário social estratégias de poder de dois grandes blocos geopolíticos que procuram utilizar justificativas ideológicas para ocultar seus interesses. Os países da Otan buscam esconder a estratégia de isolar e liquidar a Rússia como potência geopolítica e energética. 

O governo Putin, por seu lado, se tem razão na crítica a esta estratégia temerária, pois tem potencial de provocar uma guerra nuclear, procura justificar centralismo exacerbado, perspectiva cultural etnocêntrica e estratégia de abafamento de aspirações nacionais no interior da região do antigo Império russo. 

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