Disputa ideológica e luta de classes no xadrez

por Gabriel Xavier

Durante o conflito na Ucrânia, a imprensa corporativa revive as estratégias de propaganda macartista, em que as conquistas dos povos da União Soviética se devem somente ao dirigismo político

O título de Campeão Mundial de Xadrez surge em 1886 entre os reconhecidos mestres da época – Wilhem Steinitz e Johannes Zukertort – ambos nascidos em países que tombaram e deixaram de existir após a Primeira Guerra Mundial: o Império Austro-Húngaro para o primeiro e o Império Alemão para o segundo.

As raízes europeias e a extração de classe desses jogadores evidenciam um fato: o xadrez, no fim do século XIX e até o início do século XX, ainda era um esporte para poucos, apenas para aqueles abastados o suficiente para delegar tempo e esforço para sua maestria. Entretanto, o xadrez encerraria o mesmo século como um jogo das massas, reconhecido mundialmente como parte do patrimônio popular. Essa extensão aos trabalhadores/as se dá em razão de um país: a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS).

Durante todo esse período, principalmente de 1948 a 1991, o mundo foi marcado por uma intensa disputa. Os países capitalistas não conseguiam aceitar a dominância dos soviéticos no tabuleiro – e até hoje não conseguem.

Xadrez, estados totalitários e anticomunismo

Recentemente, foi publicada na Folha de S. Paulo uma matéria recontando a trajetória de Anatoly Karpov, um dos mais destacados campeões mundiais, cujo domínio estendeu-se de 1975 a 1985. A narrativa montada tenta desmerecer e condenar o jogador por apoiar o atual governo russo. Independente disso, a matéria é recheada de falácias e erros históricos sobre a URSS.

“Ele [Karpov] tinha não só a habilidade necessária, mas também uma ótima história: era filho de um proletário, não alguém oriundo da elite, e sua ascendência era considerada pura pelo regime, por não ter origem judaica”.

Importante notar que todos os jogadores da União Soviética vinham de famílias proletárias, afinal, eram todos trabalhadores/as. Ademais, notáveis como Mikhail Botvinnik, figura dominante de 1948 a 1963, era de origem judaica – em contraste com o insinuado no artigo acerca do desincentivo à ascensão de jogadores com tal origem.

A publicação também faz dezenas de alegorias clássicas na tentativa de encaixotar a URSS na categoria de “país totalitário”. Insinua que o próprio Comitê Central do Partido Comunista da União Soviética (PCUS) decidia as competições e combinava os resultados para escolher um jogador amigável politicamente:

“…sem precisar medir as palavras nem depender do Partido Comunista, que decidia quem viajava para torneios no exterior e, em muitos casos, até quem ia vencer”.

Essa afirmação é recheada de um mito clássico presente na narrativa anticomunista no xadrez: que jogadores/as disputavam torneios nacionais apenas para que os classificados para disputas no exterior pudessem ser escolhidos a dedo por um suposto burocrata do PCUS.

O campeonato nacional da URSS, que ocorreu de 1921 a 1991, era considerado um dos mais fortes durante o período, sendo que seus melhores participantes eram escolhidos para os circuitos internacionais. Mikhail Tal, campeão mundial de 1960 a 1961, foi vitorioso no âmbito nacional nas edições de 1957, 1958, 1967, 1974 e 1978; Tigran Petrosian, outro campeão mundial de 1963 a 1969, obteve o primeiro lugar na URSS em 1959, 1961, 1969 e 1975.

Todos os campeões mundiais de origem soviética batalharam ativamente para conquistar o seu lugar na lista dos melhores. O fato de os jogadores que alçaram proeminência internacional terem antes marcado a cena nacional de seu país ajuda desmentir a ideia apontada pela Folha de S. Paulo.

A matéria alimenta-se de mitos irracionais, tentando claramente aludir à ideia hiperbólica do “grande irmão”, como se o PCUS controlasse cada aspecto mínimo da vida dos cidadãos soviéticos. Aparentemente, o controle seria tão absoluto que burocratas soviéticos sabiam até quais movimentos os enxadristas formulavam em suas cabeças.

Anatoly Karpov contra Viktor Kortchnoi, as disputas de 1978 e 1981

A publicação também recorda essas duas disputas marcantes no cenário enxadrístico, principalmente porque, com exceção de 1972 a 1975, durante todo o período da chamada Guerra Fria (1947-1991), o campeão mundial foi um jogador soviético – um fato sempre inaceitável para as potências imperialistas.

De alguma maneira, desejam que as derrotas do experiente enxadrista Viktor Kortchnoi, que deixara seu país em 1976 – “por causa do xadrez, não da política” – tenham o condão de provar que a União Soviética teria agido em favor de seu conterrâneo mais jovem.

“No confronto de 1978, ambos os jogadores disputaram uma série de partidas nas Filipinas. Kortchnoi, então com 47 anos, chegou com três técnicos e uma assistente. Karpov, 20 anos mais jovem, levou uma delegação de quase 20 pessoas, entre as quais pelo menos sete agentes da KGB”.

Nessa frase fica de fora um fato marcante: Karpov nesse período já era considerado uma estrela no seu auge, sem páreos que não fossem oriundos da URSS. Tenta criar-se uma situação de Davi (Kortchnoi) contra Golias (Karpov) e criar simpatias do leitor pelo primeiro e antagonizar o segundo, como se o tamanho das comitivas não refletisse a falta de interesse dos países capitalistas no xadrez.

Anatoly Karpov encerra os mundiais de 1978 e 1981 – ambos contra Kortchnoi – de forma vitoriosa e definitiva, com qualidade e maestria superiores ao seu adversário, que não despertava tanto interesse e capital político como Robert James Fischer fazia em 1972, no mundial contra Boris Spassky.

Em outros pontos, a matéria tenta refogar um anticomunismo grosseiro ao associar todos os acontecimentos à figura de Josef Stálin, mesmo que esse tenha morrido em 1953 – vinte anos antes da disputa: “O chefe da delegação de Karpov era o coronel Viktor Baturisnky, que tinha sido promotor militar e auxiliar da repressão nos anos de Josef Stálin”.

Aqui, omite-se sem justificativa o fato de que Baturisnky foi vice-presidente da Federação de Xadrez da URSS e diretor da prestigioso Clube de Xadrez de Moscou, ou seja, uma pessoa mais do que preparada para chefiar a delegação de um evento tão importante.

O restante do artigo é igualmente recheado de anedotas na tentativa de se criar uma atmosfera na qual as vitórias de Karpov seriam resultado de trapaças e pressões soviéticas, e não fruto da habilidade do atleta. As omissões e os exageros míticos acerca da história da União Soviética e de seu conhecido incentivo ao xadrez desnudam as intenções da matéria. Não consegue ser nada além de mais uma peça de baixa qualidade da mídia hegemônica burguesa com o objetivo de caluniar qualquer parte positiva da história soviética e das experiências socialistas. Sem nenhum esteio na realidade. Nada de novo sob o sol.

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